2015-08-04

80 ANOS DE RÁDIO EM PORTUGAL.

QUANDO SE ASSINALA A EFEMÉRIDE...AQUI VOS DEIXO UM EXCERTO DE UM DOS CAPÍTULOS DO MEU LIVRO (A PUBLICAR EM BREVE) HOMENAGEANDO A "ONDA CURTA" HUMILHADA E DESPREZADA POR ALGUNS DOS DONOS DISTO TUDO:

Foto de António Bondoso
“O aspecto que primeiro chama a atenção na especificidade da situação comunicativa criada pela rádio é a portatibilidade da sua recepção.”
                                      Michael Schiffer - 1991
                                                                                                    

 O TRANSISTOR DE ONDAS CURTAS


        Entrou no quarto, passo lento e seguro, a enfermeira ao lado como se fora o anjo da guarda. Augusto, com os olhos doridos de solidão, acompanhou o cortejo, ansioso, do seu reclinado ângulo de visão – a cama articulada do Instituto Português de Oncologia. De barbas, rosto tisnado e cansado pela longa madrugada de vigília, o médico fora chamado para “curar” a ansiedade de Augusto – desperto, preocupado e lamurioso como qualquer paciente em período pós-operatório. Mas a situação comportava um simples pormenor não despiciendo: Augusto, na véspera da alta médica, havia sido sujeito a uma evisceração – o que lhe prolongou doentiamente a sua passagem pelo hospital. Sobretudo ao nível do “quarto andar”, se considerarmos os pés como o rés-do-chão, os joelhos o primeiro andar, depois a anca e, a cabeça, o último piso. É aí, onde os sentidos se controlam, que – muitas vezes – tudo se complica. O desconforto, o incómodo e o isolamento da noite nem sempre sobreviviam à agitação verificada durante o dia, com visitas permanentes da família e de bons amigos que sempre lhe dispensaram muito carinho. O que lhe valia, aliviava as dores dos pensamentos repetidos, era uma espécie de santos – os médicos que seguiam os hóspedes forçados com atenção e competência – e os anjos permanentes de bata branca e sorriso fresco, as enfermeiras e os enfermeiros que aplicavam as receitas prescritas para ajudar a equilibrar o funcionamento do corpo e da alma. Os nomes pouco importam, Paulo, Veloso, Licínio, Luísa, Maria ou a angelical Elisabete – cuja visão bastava para curar o mais frágil acamado e a voz doce e suave fazia subir às nuvens, acompanhado de uma melodia harmoniosa executada ao piano, harpa, flauta ou violino. E na falta da Elisabete, o melómano Augusto socorria-se do seu pequeno aparelho de rádio – um sony com Onda Média, FM e sete bandas de Onda Curta que havia comprado no início da década de 1990 nos Estados Unidos da América, por ocasião de um trabalho de reportagem sobre as comemorações do Dia 10 de Junho, na comunidade portuguesa de Newark. Para além de melómano, era jornalista. De rádio precisamente! Na altura em que o médico entrou no quarto, o 21 do Edifício C, o pequeno aparelho de rádio estava pousado na mesinha de cabeceira, em off, depois de Augusto ter escutado o curto noticiário das 02h00 – um intercalar onde sobressaiu o resultado do jogo inaugural do Estádio do Dragão, no qual o F.C. do Porto bateu o Barcelona por 2-0. Portista de corpo inteiro, Augusto – internado – não pode participar na festa, apesar de ter adquirido o respectivo bilhete que lhe permitiu o estatuto de “sócio fundador” do novo estádio da Invicta, com direito a nome inscrito na parede de azulejos para o efeito idealizada pelo mestre Júlio Resende. Seria sempre um bom motivo de conversa mas, pelas circunstâncias, não foi o tema eleito.
        O médico aproximou-se da cama e indagou das razões que preocupavam Augusto: - então, o que se passa? Que forte razão para me chamar? A resposta surgiu numa voz fraca, parecendo ecoar na cabeça de Augusto, como se estivesse a sonhar ou a pairar no espaço sidério: - ansiedade, dificuldade em dormir …
--- isso não chega, dê-me uma razão mais forte.
--- a verdade é que estou ansiosamente bloqueado, não me deixam tomar o ansiolítico que há já muitos anos me acompanha, estou triste, longe da mulher e do filho, estou cansado – quero ir para casa…
--- e há-de ir, sr Augusto, mas não agora, a estas horas da noite. O dr Paulo, logo de manhã, virá vê-lo e… decidirá. Por agora, vai tomar o ansiolítico e dormirá certamente descansado.
        Enquanto falava, o olhar do médico pousou interessadamente no pequeno aparelho de rádio e atirou: - qual é a sua profissão? É militar?
--- Não, não sou militar, mas cumpri a minha quota-parte do Serviço. Há trinta anos que sou jornalista, desde sempre um homem da rádio.
--- Só podia ser, constatou o médico – Silva Louro, como estava escrito na placa pendurada na bata. Jornalista ou militar… E se fosse em África ou na América Latina, talvez guerrilheiro. Só eles usam rádios com bandas de onda curta.
--- Este é o rádio que me tem acompanhado sempre nas deslocações pelo país ou ao estrangeiro… e agora aqui no hospital! É uma companhia excelente. E é um bom hábito para um repórter, manter-se informado, ouvir, perceber o mundo e enquadrar o objecto da reportagem.  
         Silva Louro aprovou com um ligeiro aceno de cabeça e, depois, como que rebobinou o filme da sua vida em dois ou três curtíssimos segundos, para voltar à questão militar: - em que ano e onde esteve?
--- Assentei praça em Nova Lisboa, na Escola de Aplicação Militar, em Fevereiro de 1971. Sete meses na EAMA, no curso de sargentos milicianos.
--- Nova Lisboa? Também eu, mais tarde… mas passei para o outro lado, para o MPLA. Fui colega de escola de Agualusa, no Huambo e também daquele que viria a ser o médico pessoal de Savimbi. Depois da independência deu-se a guerra civil e seguimos caminhos diferentes.
--- Foi uma guerra muito dura!... E longa…
--- Sim, até demais. Um longo cansaço, que me fez desistir. Ainda se tentou fazer qualquer coisa e recordo-me até de construirmos um hospital de campanha nas traseiras da EAMA. O Quartel tinha sido arrasado. Mas depois foi terrível a indiferença dos dirigentes angolanos – nomeadamente do Presidente Eduardo dos Santos – para com a reivindicação de melhores condições de trabalho para os médicos. E isso fez-me perder a fé na luta, pelo que resolvi vir para Portugal.  
         Despediu-se, Augusto tomou o comprimido e em breve adormeceu. Não só pelo efeito do ansiolítico, mas por que a conversa com o médico o havia transportado a uma juventude longínqua, à África da sua criação, à África de longos horizontes, à África das matérias-primas cobiçadas, à África de todos os sonhos.      

Foto da Web
António Bondoso
Jornalista
Agosto 2015.

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Olá Amigo, bom dia.
Por causa do convite que recebi e ao qual não sei se poderei comparecer, vim até cá e AMEI!!! assim, sem favor, sem exagero.
E nota-se o Jornalista/escritor, ou vice-versa, que já tinha notado, embora menos, na poesia...a mão e a "caneta" a dar "letras" ao olhar;
tudo simples, preciso e conciso, como me ensinou a minha Prof. de Português/Literatura, há muitos anos, em relação a um bom discurso e suas três qualidades.
Grande abraço meu Amigo!
Maria Mamede