2016-06-10

PORTUGAL - ENTRE CAMÕES E A ATUAL IDEIA DA HISTÓRIA 

Foto incluída no Livro de Helder Pacheco PORTO - MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 
Afrontamento - 1994

Há uns anos - 2009 - elaborei um pequeno estudo/ensaio sobre este tema. Hoje, porque é 10 de Junho, permito-me deixar-vos um excerto desse trabalho: 

    A IDEIA DE PORTUGAL NO MUNDO
    EM CAMÕES, NOS CICLOS IMPERIAIS E NA ACTUALIDADE


                                 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
                                 Muda-se o ser, muda-se a confiança;
                                 Todo o mundo é composto de mudança,
                                 Tomando sempre novas qualidades.
                                 Luís de Camões - Sonetos[1]

            É este o mote para nos abalançarmos a uma breve reflexão sobre a “ideia de Portugal no mundo” ao longo de séculos. Partindo de Camões e da epopeia gloriosa dos Descobrimentos até aos nossos dias, passando pelas tragédias do império na África, na América e na Ásia – até à sua perda definitiva em 1974.
            A aventura gloriosa dos descobrimentos colocou Portugal em lugar cimeiro no concerto das Nações. Pelo Tratado de Tordesilhas, celebrado com Castela, os portugueses permitiram-se dividir o mundo – já descoberto e a descobrir – em duas metades. Uma visão política de largo alcance que, no entanto, viria a perder-se ao longo dos tempos. Não só devido à circunstância de sucessivas alterações políticas, sociais e económicas mas, sobretudo, por falta de recursos humanos para efectivar uma ocupação consistente. Não será de estranhar, portanto, uma opção mais virada para a actividade comercial – particularmente com o Oriente.
            Assim, nos idos de quinhentos e de seiscentos, Portugal [a par da Espanha] assume e difunde a ideia de uma “potência” marítima – uma talassocracia com um projecto e um objectivo definidos: mostrar a Europa ao Mundo e trazer o Mundo à Europa. África, Índia, Brasil, Malaca, China e Japão – uma volta ao mundo em 500 anos !
            Mas o “projecto” viria a ter custos elevados. Em recursos humanos e materiais e ainda na reacção de outros Estados Europeus bem mais poderosos, como a Inglaterra, a França e a Holanda.  
            É nesta perspectiva que se pode enquadrar hoje uma leitura política da obra de Camões, particularmente n’Os Lusíadas. O Velho do Restelo, no Canto IV, as estrofes e as mensagens dos perigos que a Nação corria:- a denúncia dos perigos de quem ia, as dificuldades de quem ficava, as promessas por cumprir, o despovoamento do reino e o sorvedouro das guerras. Feliz ou infelizmente, ninguém com responsabilidade política no reino se apercebeu dessa “leitura” camoniana e, assim, o curso da História tomou os rumos que hoje se conhecem.
            Quando se perdeu D.Sebastião, perdeu-se mais do que o reino e do que o império. Perdeu-se a identidade política de Portugal que, apesar de recuperada em 1640, não voltaria a restaurar o prestígio do país no Hemisfério Sul – onde a Inglaterra, a França e a Holanda passaram a ser os senhores do mapa.
            Um novo golpe, profundo, viria acoplado à revolução liberal de 1820 – no rasto das revoluções americana e francesa – e que, triunfante, levaria à perda da maior parcela do império, o Brasil. Jamais Portugal voltou a ser considerado como fazendo parte da família das grandes potências europeias e mundiais.
 Contudo, durante esse longo período de quase quatrocentos anos, Portugal teve um papel importante na projecção da Europa sobre o resto do mundo. E contribuiu decisivamente para o alargamento da comunidade internacional e para o desenvolvimento das relações internacionais, pondo em contacto povos de diversas raças, etnias, credos, religiões e culturas.
Não suscitavam admiração, por isso, os relatos de figuras ilustres que nos visitavam, sobre o desenvolvimento do país. Hans Christian Anderson, em 1865, após prolongada estadia, escrevia por exemplo :- Mas que transição veio de Espanha para Portugal. Era como se tivéssemos voado da Idade Média para a idade moderna [2]. Portugal tornara-se a sociedade mais avançada do Sul da Europa, nela despontando por ex Alexandre Herculano, Almeida Garrett e depois Antero, Camilo e Eça. Como escreve ainda Martin Page – sobretudo no domínio dos direitos civis, Portugal tinha-se tornado um exemplo para o resto do mundo.
A indústria, finalmente, acertava o passo; o país era o maior produtor mundial de cortiça e Eiffel projectava e construía em Portugal.
Mas esse “contributo” não mereceu o reconhecimento dos seus pares europeus, particularmente pela manipulação conduzida por Cecil Rhodes a propósito das possessões portuguesas em África. E foi o tempo da humilhação do Ultimato que, depois, conduziu ao Regicídio, ao fim da Monarquia e à implantação da República. Curiosa e tragicamente, foi a I Guerra Mundial que “salvou” o resto do Império, depois de – pouco tempo antes do conflito – a Alemanha e a Inglaterra terem “negociado” a partilha de quase todas as colónias portuguesas.
O novo regime, no entanto,  não se mostrou capaz de devolver a estabilidade ao país. Nos primeiros quinze anos, a República ofereceu-nos sete eleições gerais, oito presidentes e 45 governos – um dos quais durou menos de um dia. Os cofres do Estado não resistiram e foram mesmo “arrombados” com o golpe de Alves dos Reis. A dívida pública, de uns modestos 400 milhões de escudos, multiplicou-se como por milagre e chegou aos 8 mil milhões.
Internamente, foi com naturalidade que o povo aceitou o golpe militar de 1926, numa altura em que a credibilidade externa do país, da segunda metade do séc. XIX, se havia esgotado. A Sociedade das Nações perdera a confiança e Churchill perdoou quase três quartos da dívida de guerra que ainda estava por saldar. Também naturalmente, o povo aceitou Salazar e a sua ditadura do Estado Novo – ancorada na família como pedra basilar de uma sociedade organizada.
A ditadura trouxe a repressão policial, nasceu a PIDE e instituiu-se a censura. As liberdades foram acorrentadas em África, no Campo do Tarrafal, em Cabo Verde.
Veio a II Guerra Mundial e o regime preferiu uma “neutralidade colaborante” ao envolvimento directo no conflito, como havia acontecido na Grande Guerra. Mantendo a aliança com a Inglaterra, o objectivo prioritário era a salvaguarda da integridade territorial no Atlântico Norte e das colónias de Angola e de Moçambique. E em 1949, mais por pressão dos aliados [reconhecimento da importância estratégica dos Açores] do que por vontade da liderança portuguesa, o país é membro fundador da NATO/OTAN. No entanto, o grande objectivo de Salazar era o Forum das Nações Unidas – para o qual Portugal não foi convidado pelas grandes potências, quer pelo clima de “guerra fria” já instalado entre os EUA e a URSS, quer pelo facto de o regime não ser democrático. O veto da URSS prolongou a marginalização de Portugal até 1955, embora o país fizesse parte do chamado “bloco ocidental”.
Em 1960, quando Portugal adere à Associação Europeia de Comércio Livre – EFTA – já a imagem do país se havia deteriorado na cena internacional, particularmente na ONU onde predominava uma corrente anti-colonialista, a qual – no ano anterior – havia aprovado uma resolução condenando o colonialismo português.
1961 foi o “annus horribilis” para a imagem externa de Portugal, com a perda de Goa, Damão e Diu – pela força – para a União Indiana, e particularmente com o início da chamada Guerra Colonial em Angola, em Fevereiro. Mais tarde, com a abertura das frentes na Guiné e em Moçambique, a imagem negativa do país agravou-se e nem mesmo as “boas” relações com a Santa Sé conseguiram evitar o “golpe de misericórdia” em 1970 :- o Papa Paulo VI recebe em audiência privada os dirigentes dos Movimentos de Libertação das colónias portuguesas.
O “isolamento” internacional de Portugal só viria a ser quebrado com o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que conduziria o país à democratização, à descolonização e ao desenvolvimento. Foi a queda do império, o corte com o passado – a queima das caravelas na metáfora de Adriano Moreira. Mas nem tudo foi perfeito. 1974 e 1975 foram anos difíceis, de forte luta interna pela escolha de um modelo para o novo regime, ainda com a guerra fria em pano de fundo. E o “perigo” da instauração de um modelo comunista no extremo ocidental da Europa e numa pequena ilha do extremo oriente, levou mesmo os EUA a “caucionarem” a invasão de Timor-Leste pelo exército indonésio – uma questão só resolvida internacionalmente em finais do séc.XX.



[1] - Selecção sobre “A experiência humana e a reacção perante a vida”. Em Textos Literários do Séc.XVI, de M.Ema Tarracha Ferreira e Beatriz M. Paula. Aster, Lisboa, 1960. 3ª edição, corrigida e aumentada.
[2] - Citado por Martin Page em A Primeira Aldeia Global. Casa das Letras, Lisboa, 2008 – 3ª edição. 

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