2020-01-13

AS ONDAS DA RÁDIO vão ficando mais pobres…ou de como o desaparecimento físico de alguns camaradas vai marcando o resto da nossa caminhada. Até sempre Nuno Rebocho. 


Ontem foi o Nuno Rebocho, que eu conheci na Rádio e depois como poeta. Liga-nos a escrita, sobretudo a Poesia, a Rádio e o apelido. Rebocho é indicativo de ligações ultramarinas – tendo ele crescido e estudado em Moçambique até 1962, dezassete anos a ganhar raízes africanas – possuindo laços familiares ao meu amigo Toneca, cujo pai viveu longo tempo em Angola e foi primo de Rebocho Vaz que ali desempenhou o cargo de governador-geral.
         A sua matriz «libertária» de poesia pensada e refletida conduziu-o à contestação ao regime da ditadura, o que lhe valeu cinco anos de prisão em Peniche.
         Do percurso de Nuno Rebocho nos jornais não tenho grande memória, mas na Rádio mantivemos uma relação mais permanente. Pela cultura, claro, e quando ele desempenhou funções de chefia na redação da RDP2. Mais tarde Cabo Verde a balizar o seu horizonte – ainda e sempre a chamada do ritmo africano. Mas voltou ao «puto» já cansado e para ficar, antes de partir. Tive pena de não poder responder ao convite que me enviou para assistir à apresentação do seu livro mais recente «Rotxa Scribida», de 2019, uma homenagem a Cabo Verde com a chancela da editora Rosa de Porcelana dirigida pelos meus amigos Márcia e Filinto Silva. 



A madrugada, o tempo [entre paredes], o silêncio, a memória, o infinito – constantes do seu momento poético, traduzidas nestes seus versos que a seguir vos deixo.
         Para ti, Nuno, que haja uma nova madrugada verde:
Quando o verde se mostrava

entre os verdes, em busca de Guillelmo Velez

E de verde se vestiu a madrugada. E a estrada era o verde
e era a entrada por onde o verde corria por fora da estrada.
Então o verde cansou-se e mudou-se de amarelo como farpela
que enrodilha o diário com o medo de se transformar em contrário.
E já não havia verde - o magenta magoou-se no lápis de pastel:
estava a sanguínea na pausa do tempo e não havia tempo,
nem amarelo, nem magenta. Apenas a madrugada cantava
e o verde voltava à madrugada. E já não era silêncio.
E já não era amanhã. E já não era o vício de cruzar as pernas,
de se oferecer como pélvis ao sacrifício de uma cama manchada:
e o verde descansava de ser verde. Era árvore. Era parede.
Era pénis entre as tetas do tempo. Era o verde que penetrava
por orifícios onde o som refulgia. E era memória. E era dia.
E era ouro quando o cacau mergulhava por dentro da estrada
à entrada da noite. E já não era silêncio: era amanhã, o corpo
aberto em grito de infinito. E o ouro era verde como um suicídio,
mas a corda quebrava, a noite quebrava, o verde cobrava o vento
que se desfazia em tempo, que se desfazia em água. E inundava
a estrada que era verde porque a vida era verde. Era verde e cantava.
António Bondoso
Porto, Janeiro de 2020




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