AS
ONDAS DA RÁDIO vão ficando mais pobres…ou de como o desaparecimento físico de
alguns camaradas vai marcando o resto da nossa caminhada. Até sempre Nuno Rebocho.
Ontem foi o Nuno Rebocho, que eu conheci na Rádio e depois como poeta. Liga-nos a escrita,
sobretudo a Poesia, a Rádio e o apelido. Rebocho é indicativo de ligações
ultramarinas – tendo ele crescido e estudado em Moçambique até 1962, dezassete
anos a ganhar raízes africanas – possuindo laços familiares ao meu amigo
Toneca, cujo pai viveu longo tempo em Angola e foi primo de Rebocho Vaz que ali
desempenhou o cargo de governador-geral.
A sua matriz «libertária» de poesia
pensada e refletida conduziu-o à contestação ao regime da ditadura, o que lhe
valeu cinco anos de prisão em Peniche.
Do percurso de Nuno Rebocho nos jornais
não tenho grande memória, mas na Rádio mantivemos uma relação mais permanente.
Pela cultura, claro, e quando ele desempenhou funções de chefia na redação da
RDP2. Mais tarde Cabo Verde a balizar o seu horizonte – ainda e sempre a
chamada do ritmo africano. Mas voltou ao «puto» já cansado e para ficar, antes
de partir. Tive pena de não poder responder ao convite que me enviou para
assistir à apresentação do seu livro mais recente «Rotxa Scribida»,
de 2019, uma homenagem a Cabo Verde com a chancela da editora Rosa de Porcelana dirigida pelos meus
amigos Márcia e Filinto Silva.
A
madrugada, o tempo [entre paredes], o silêncio, a memória, o infinito –
constantes do seu momento poético, traduzidas nestes seus versos que a seguir vos
deixo.
Para ti, Nuno, que haja uma nova
madrugada verde:
Quando o verde se mostrava
entre os verdes, em busca de Guillelmo Velez
E de verde se vestiu a madrugada. E a estrada
era o verde
e era a entrada por onde o verde corria por
fora da estrada.
Então o verde cansou-se e mudou-se de amarelo
como farpela
que enrodilha o diário com o medo de se
transformar em contrário.
E já não havia verde - o magenta magoou-se no
lápis de pastel:
estava a sanguínea na pausa do tempo e não
havia tempo,
nem amarelo, nem magenta. Apenas a madrugada
cantava
e o verde voltava à madrugada. E já não era
silêncio.
E já não era amanhã. E já não era o vício de
cruzar as pernas,
de se oferecer como pélvis ao sacrifício de
uma cama manchada:
e o verde descansava de ser verde. Era
árvore. Era parede.
Era pénis entre as tetas do tempo. Era o
verde que penetrava
por orifícios onde o som refulgia. E era
memória. E era dia.
E era ouro quando o cacau mergulhava por
dentro da estrada
à entrada da noite. E já não era silêncio:
era amanhã, o corpo
aberto em grito de infinito. E o ouro era
verde como um suicídio,
mas a corda quebrava, a noite quebrava, o
verde cobrava o vento
que se desfazia em tempo, que se desfazia em
água. E inundava
a estrada que era verde porque a vida era
verde. Era verde e cantava.
António Bondoso
Porto, Janeiro de 2020
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