HAVERÁ
SEMPRE UMA MORNA PARA SAUDAR CABO VERDE.
Carlos Veiga, que eu acompanhei na livre campanha eleitoral de 1991 à frente do MpD, foi o intérprete de uma das «mornas» mais decisivas para o novo «rosto» do país após 15 anos de partido único.
Em termos pessoais e a longo prazo, certamente não terá atingido todos os objetivos que norteiam a ambição de um homem político. Mas a sua ação à frente do MpD, que o conduziu ao cargo de 1º Ministro em dois mandatos, constituiu seguramente um ponto de rutura com o passado elevando as Ilhas Atlânticas a um novo patamar de afirmação no contexto africano.
Ela foi, de
facto, um momento decisivo, como
destacou nessa conversa que tivemos em Fevereiro. “A pressão externa foi
importante e o regime de partido único percebeu-o. Cabo Verde era dos países
que mais APD recebia dos “doadores” e sabia que tinha de “abrir”. Mas a Mudança
que ocorreu ultrapassou de longe a “abertura” prevista pelo regime. A sociedade
cabo-verdiana mostrava então abertamente o seu descontentamento com o
status-quo e, através de um grupo crescente de jovens quadros e activistas,
mostrou que queria mesmo uma mudança de regime e não a tímida abertura
“oferecida”. Queria uma democracia verdadeira e mostrou-o através de
propostas claras e consistentes, contrárias às do regime, manifestando-se
pacificamente nas ruas, com crescente apoio popular, ao mesmo tempo que se
disponibilizava para discutir as suas propostas com o Poder, pacificamente”. (…)
O momento era aquele! O apoio popular era crescente. A
palavra de ordem “medo dja caba” (o medo acabou) espalhou-se
amplamente e com entusiamo em todas as ilhas, mesmo naquelas em que a
repressão foi mais intensa”.
Esse «momento», disse-me Carlos Veiga,
foi mesmo fundamental para o desenvolvimento de Cabo verde: “Não há
desenvolvimento sem democracia. Em Cabo Verde isso é, hoje, uma evidência. O
desenvolvimento humano trazido pela democracia não tem comparação com a
situação vivida sob o partido único. Foi também a democracia que trouxe
efectivo crescimento económico. Em 1991 o crescimento era zero; em 2001 atingiu
cerca de 8% em média quinquenal”.
Apesar de tudo isso, não faltaram recentemente tentativas de assassinato do seu caráter.
E hoje, no seu livro «PODER E OPOSIÇÃO EM CABO VERDE – Discursos, Mensagens e Intervenções, 1990-2015», Carlos Veiga pormenoriza essa década final do século XX, querendo deixar às novas gerações – sobretudo aos académicos – documentos fundamentais para o estudo da História recente do país, procurando ultrapassar o que considera um lapso infeliz o esquecimento a que a sociedade cabo-verdiana tem votado esse período.
No livro, de certa forma escalpelizado, numa entrevista
a António Monteiro, do Expresso das Ilhas
na sua edição impressa de 14 de Junho, o antigo Primeiro-Ministro de CV salienta
que “a matriz daquilo que
hoje nós somos como instituição, como sociedade, de alguma forma se deve um
pouco à década de 1990 e a tudo aquilo que foi feito nessa década”. E
acrescenta que, antes da «Liberdade» conquistada, os grandes marcos da sua ação
governativa foram a reforma da Constituição e a criação de um «Poder Local»
forte, próximo dos munícipes, com capacidade para resolver os seus problemas.
Depois, na parte final desta entrevista ao Expresso das Ilhas, Carlos Veiga destaca
a mudança do regime: “(…) em que as pessoas eram oprimidas e perseguidas por se
exprimirem, por se manifestarem, em que a imprensa era condicionada, ou era
única como tudo o mais, as próprias manifestações culturais eram únicas; as
pessoas não tinham liberdade nem do ponto de vista cultural, nem do ponto de
vista corporal, pois precisavam da autorização da Segurança para poderem
viajar; a criação de um ambiente de liberdade e democracia; a independência da
justiça e das próprias actuações das forças policiais ou das forças armadas; os
símbolos nacionais que passaram a ser símbolos representativos de Cabo Verde e
mais adequados àquilo que são os cabo-verdianos e a nação cabo-verdiana”.
Por último, o que chama de «desestatização» da economia: “(…) O Estado era tudo na economia e com tendência ainda para ser mais que tudo, e nós apostamos no sector privado, apostamos na desregulamentação de algumas matérias que eram regulamentadas, que serviam mais como uma forma de beneficiar amigos do que os próprios cidadãos. Nós passamos a poder comer maçã, nós passamos a poder comprar livremente os nossos produtos, etc. Reforçamos os direitos sociais nas primeiras revisões da Constituição. Existe um livro do Mário Silva sobre os direitos sociais em Cabo Verde que demostra isso muito bem. Claro que o mundo mudou e a governação não se faz como nos anos 90, mas os princípios fundamentais permanecem, as estratégias fundamentais de levar tudo isso às pessoas continuam a ser válidas”.
Parabéns Carlos Veiga, a «morna» com que desafiou os
primeiros dez anos da IIª República embalou o País; Parabéns a Cabo Verde pela
interessante caminhada numa África «periférica».
António Bondoso
5 de Julho de 2023.
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