CONVERSAS CRUZADAS DE UMA SALA DE ESPERA NUM
CENTRO DE SAÚDE PERTO DE SI
Sala
cheia, entre números e vozes de chamada para a inscrição ou para a consulta. E
muitas conversas cruzadas. Véspera do Dia da Saúde Mental.
Sabe
qual é a melhor hora para se vir aqui? É à hora e meia! Há menos gente.
Olhe…e
como vai o seu marido? Ainda trabalha naquela casa dos leitões? Aquilo é que
era um leitão! Que categoria. Mas já não o vejo há muito tempo. Ele está bem?
E
a demora…
Diz
outra voz: os médicos também adoecem!
E
a imagem de fundo, para além das pessoas a circular, é um écran de televisão
com a emissão da TVI. O tema – o suicídio!
E
as vozes…só venho por causa da medicação. Faz-me falta. Vamos lá a ver se isto
vai. Vamos lá ver!
Do
outro lado…e o meu pai, coitado, teve que ficar sozinho, eu não posso. E foi
agora operado às hérnias. E eu…é como se vê.
Prosseguem
as vozes no meio do suicídio da TVI.
Há
dias caí na rua…nem tive tempo para nada. Lá veio a ambulância e só dei conta a
caminho do hospital. Aquilo até mete medo. É cada um!
Mais
uma voz: olhe, e os seus meninos estão bem?
Bem,
graças a Deus. Olhe, temos agora mais um. Foi anteontem. Um artista!
O
meu é o futebol. É a paixão dele. Tem vontade mas não joga nada de jeito. Mas é
cá um portista!
O
meu já está um homem! E a irmã…é muito meiguinha!
Ó
D. Aldina…já chamaram por si!
Já
ouvi, obrigada.
E
outro…que entra esbaforido, nervoso, quase a sufocar…de tão gordo que é. Onde estão
as senhas? (Temporariamente fora do sítio habitual, por obras na parede antiga).
Aí,
em cima da mesa!
Ahhh…obrigado.
E
a TVI continua em fundo. Agora são os crimes de faca e alguidar (depois de uma
breve passagem pela promoção do calcitrin): discute com a irmã e atinge o
sobrinho com um tiro na cara.
Admiração
sonora: - ai 75! Setenta e três tenho eu.
E
chega a altura do noticiário das 13. O vai e vem dos utentes prossegue.
Um
pai com um bébé ao colo, uma idosa apoiada numa bengala e que não sabe se o seu
rendimento provém da pensão xis ou do complemento do idoso. O filho que a
acompanha também não sabe. O papel está em casa.
E
o dinheiro, que tanta falta faz: - quem me dera o totoloto! Uma boa quantia
dava jeito. E se fosse o euromilhões?
A
raspadinha é que é uma tentação. Às vezes lá sai 20 euritos.
Ó
rapariga…isto não está pra nós!
E
o telejornal: - a estabilidade que se deseja no país. À medida de cada um,
claro!
Tou?...já
fez o depósito?...falou no sábado?...mas já não paga há 4 meses!...faz
amanhã?...veja lá, não estrague a sua vida! E volta a efetuar uma chamada: -
olá, sou eu! Ele ainda não fez o depósito! Envia a carta! Em nome da
estabilidade - digo eu!
E
eu? De repente veio-me à ideia uma pessoa amiga: - a mim, nunca me dói nada! Sr
António Augusto Bondoso! Suba ao 3º andar que a Senhora Doutora vai já
chamá-lo.
António Bondoso
Jornalista
Outubro de 2019.
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