ALGUMAS FIGURAS DA MINHA VIDA (2)
«As “utopias” estão tatuadas em meu pensamento, em minha carne, pela palavra e pelo gesto». Assim vos apresento MARIA REGINA FERNANDES CORREIA, natural de Viseu, embarcada aos 8 meses para Angola, de onde voltaria ainda criança para estudar e crescer…depois Professora em várias latitudes e Poetisa – “Não fosse a palavra e/ todos os gestos a que/ amor dá alma se/ perderiam/ irremediavelmente no/ coração da/ desesperança”.[1]
E
foi pela palavra e pela Língua que nos conhecemos na Madeira há uns anos, no
âmbito da I Semana
Cultural das “CPLP Multilingual Schools” e I Festival “Sons da Lusofonia. Depois, Regina Correia esteve comigo na
Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto a apresentar o meu AROMAS
DE LIBERDADE(s); levou-me à Associação dos Antigos Alunos do Ensino Secundário
de Cabo Verde, em Lisboa e falou do meu livro EM AGOSTO…A LUZ DO TEU ROSTO; e
mais recentemente acompanhou-me na apresentação de O MEU PAÍS DO SUL dizendo
Poesia de consagrados Poetas Santomenses – nomeadamente de Francisco José
Tenreiro.
O Ensino, a Língua, a Escrita, as Viagens, os Lugares fazem de REGINA CORREIA…uma cidadã do mundo: de Viseu a Angola, da Madeira a Estugarda e Hamburgo, de Lisboa a Cabo Verde. A honra de a ter conhecido e de com ela ir privando como Amiga, levaram-me a considerá-la como uma das «Figuras da Minha Vida». Daí, este pequeno bate-papo, por escrito, tradução muito clara de outras conversas.
***
Deve ser um coração muito partido, o teu. QUE FATORES mais contribuíram para
isso? Viagens “forçadas/inesperadas”, inquietação, sensibilidade…ou as
«maldades» do ser humano?
- Hoje, o coração, apesar dos descaminhos no
cruzamento de mapas, está “inteiro”, no que tem que ver com o apaziguamento
interior, pela consciência mais objectiva do mundo. Durante a infância e parte
da adolescência, sim, meu coração foi de facto, muito partido, em termos de
fragmentação do eu, já que as andanças de então, a que chamo “desviagens” foram
forçadas, “maldades” de meus pais que me enviaram, sozinha, com seis anos e
meio, sem conhecer vivalma, dos matos angolanos para os matos de Viseu. E a
“lucidez do vazio” instalou-se quase definitivamente em mim. Naturalmente,
também a inquietação assente em estranheza, em ausência(s), em silêncio(s). A
minha escrita nasce da necessidade de iluminação da memória nas sombras que
alimentam a solidão e a saudade.
*** De
todos os lugares de “afetos” (pois houve alguns seguramente) …em qual é que te
sentes capaz de juntar os pedaços…ir reconstruindo o “puzzle” da tua vida?
- Apesar de me ver em modo de “represa”, não concebo a vida sem correntezas. Há três rios que me atravessam a alma – o Kuanza, o Tejo e o Elba. Escrevi em “Sou Mercúrio, Já Fui Água” (2012) que “Há sempre um rio // serpenteando por entre a // difusa luz da fuga e o //alongado // tornear de cada // regresso”, porque “sou um animal de margens”. Quando retomo minha “cartografia identitária”, por diversas e inesperadas (muitas) circunstâncias da via-sacra, é no Tejo que encontro o fio sólido para cerzir minha manta de retalhos. Lisboa é o lugar de intersecção, vaso comunicante entre todas as ilhas do labirinto em que o meu futuro enraizou, desde os oito meses de idade (aliás, mesmo antes de nascer). O lugar do “eterno retorno” – “Cobriu-se o Tejo de esquivas barcas. Regresso? // Ou partida para a vertigem da jornada?” (Conjugação de Mapas, p.25)
*** REGINA CORREIA…professora, mulher de
cultura e de culturas, a língua, a literatura, prémios…Escrever, pensar,
analisar escritores, dizer Poesia com excelência. És um «ser» completo?
- Nunca poderia considerar-me um ser
completo, não acredito que tal sentimento habite alguém. Doutro modo, o que nos
ficaria para preencher na viagem até ao último cais? Sou mesmo muito
incompleta, como ser humano ou “animal de cultura”. E toma-me uma asa triste de
mágoa.
*** …O que faz ainda falta?
- Como ser humano, como mulher, quanta frustração, tão ínfima tem sido minha parcela de desempenho na construção de um mundo melhor. Como se tudo me tivesse ficado por fazer, relativamente a toda a espécie de discriminação, seja de racismo primário, pela cor da pele, seja discriminação de género ou a exploração de uns pelos outros. E no que toca ao campo literário, então aí desapareço completamente na “poeira estelar”. De mão dada com as limitações em que me reconheço, vou caminhando na certeza de que nada sou e nada sei, face à imensidão.
*** Continuas a correr atrás de utopias?
- As “utopias” estão tatuadas em meu
pensamento, em minha carne, pela palavra e pelo gesto. Talvez tenham desbotado,
pelos desencantos que a engrenagem político temporal foi teimando em instalar
nas linhas de acção sonhadas pela “conjugação de mapas”. Mas nada as consegue
apagar, de vez. Restar-me-ia o suicídio.
*** A «conjugação dos teus mapas» é a “utopia
maior”? Todo o Universo…ou apenas o da «Língua Portuguesa»?
- Sem dúvida. Esta minha “conjugação de mapas” persegue o sonho de um reino do HUMANO, verdadeiramente universal, usando a língua portuguesa como arma. A propósito, a professora Anabela Almeida escreveu “O princípio deste livro é o Lugar, o espaço de pertença de todos e cada um, não importa a sua situação geográfica, política, social, económica, religiosa. As fronteiras não existem na Conjugação dos Mapas”. Apoiando-me na “Parte” tento chegar ao “Todo”. “E das empenas do retraimento versos // e lendas prometendo-me outras bandeiras // numa cantilena onde cabe o universo”. (Conjugação de Mapas, p.26)
*** Quando se fala em conceitos de Lusofonia,
Espaço Lusófono, Língua Portuguesa…sentes ser parte de qual? Ou vives e sentes
«à margem»?
- À partida, sinto-me mais “confortável” no
espaço conceptual de língua portuguesa. Afinal, tendo em conta, embora, todos
os quês de dominação e de mal-entendidos, é Portugal a base espácio-temporal,
histórica, sociocultural para o estabelecimento desta língua nos diferentes
continentes. Procurando eu viver numa ponte de entendimento entre “todos os
mapas”, doem-me as dores dos que são ou se sentem discriminados. Como gostaria
de poder situar-me “à margem” de melindres que atacam uns e outros! “Ninguém
// determina // a pátria onde // sou. Reconheço-me na // conjugação de mapas
que a // Língua vem tricotando // retalho a retalho // como se um manto de // luz
// abrisse todas as portas // diante da // orfandade (...)” (Conjugação de
Mapas, p.49)
*** Em qualquer caso, nunca é uma posição
cómoda?
De facto, a posição é muitas vezes incómoda, quando nos movimentamos no âmbito destes conceitos, já que há países de língua oficial portuguesa, cujos povos possuem uma “língua mãe” nacional, como nos casos dos “crioulos” de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de S. Tomé e Príncipe, por exemplo. Por outro lado, dado o número avultado de línguas nacionais, a língua portuguesa funcionará como língua de unidade na comunicação entre as diferentes etnias, para as nações angolana e moçambicana. E refiro-me só aos PALOP. Teríamos de pensar no Brasil ou em Timor-Leste. Neste sentido, tendo a alinhar pelo pensamento daqueles que defendem o conceito de “lusografia” versus o de “lusofonia”.
*** Muito grato Regina Correia. Mais
dias Felizes.
António
Bondoso.
Novembro
de 2021.
[1] - Conjugação de Mapas, 2ª edição, 2020. Editorial Novembro. Premiado com o «Troféu Literatura Clarice Lispector 2021.
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