O MUNDO VISTO DO MEIO…ou de como o jornalismo se afirma como literatura. Uma velha questão que a jornalista/escritora Conceição Lima, de S. Tomé e Príncipe, ressuscita no seu livro mais recente com o título mencionado. Um livro de crónicas (apesar de já com algum tempo conseguem transmitir atualidade) – talvez uma das «vertentes» mais nobres do jornalismo – às quais a autora acrescenta o que chama de «Um auto do século XX», datado de 2021 e que refresca o dramático ano de 1953, atualizando o «pensamento» sobre o designado Massacre de Batepá.
É mais um texto sobre a minha ideia genérica de “UM LIVRO DE VEZ EM QUANDO”, sendo que este da São Lima também não me surpreende. A autora merece a distinção de grande Poetisa e, para mim, igualmente o louvor de uma jornalista completa. É sabido que a «crónica» expõe, talvez como nenhuma outra face do jornalismo, o seu autor. Mas a credibilidade da «crónica» depende sobretudo da solidez dos argumentos que oferecem honestidade à opinião de quem escreve. E tudo isso está patente nos escritos que a São Lima nos apresenta neste O MUNDO VISTO DO MEIO.
Não
me parece ser a «crónica» uma vertente do jornalismo com muita tradição em STP.
Recuando um século, mais ou menos, vem à memória o celebremente pouco conhecido
Mário Domingues, também ele um jornalista são-tomense, mas no Portugal europeu,
que aos 17 anos entrou pela ficção e que publicou a “Audácia de um Tímido” em
1923. Escritor, editor, tradutor, publicista, historiador – mas sobretudo
anarquista – Domingues foi também um devotado jornalista que cultivou o género
da crónica em algumas revistas e jornais portugueses.
Para este género de jornalismo é preciso uma grande dose de coragem, particularmente num meio pequeno como é este país insular africano. E essa coragem tem custos, claro. A autora assumiu a sua independência e tem pagado por isso ao longo dos anos. O que não a impediu agora de valorizar os textos publicados, alguns em tempos não muito remotos, carregados de fortes críticas sociais e políticas. É sobretudo esse o mote, aliás bem destacado pela São Lima na sua “Advertência” inicial, quando – numa imagem britanicamente fleumática – entende ser ancestral a razão de chamar tudo pelos nomes, como forma de celebrar por exemplo a nomenclatura das espécies da flora e da fauna insulares: os seus sons, a sua pronúncia, a sua grafia, a beleza da sua singularidade.
Volto
ao início da minha «crónica» para enfatizar mais dois ou três pormenores. Primeiro,
o título do livro. O MUNDO VISTO DO MEIO faz-me lembrar uma das designações de
STP como as Ilhas no meio do mundo, situadas no Equador do Golfo da Guiné e muito
próximo do meridiano de Greenwich.
Depois, algumas crónicas deliciosas nas quais recorda por exemplo a
«combatente» Alda Do Espírito Santo, o Riboquense Carlos Teixeira que eu conheci
na Embaixada em Lisboa ou do músico José Aragão de Os Leoninos e dos Úntués.
Não querendo revelar todo o conteúdo, há outras
que não posso deixar de nomear, como por exemplo “Carta à Apolinária” escrita
também na variante são-tomense do português, na qual se destacam as mudanças da
«terra»: “Genti come bunzu assado, caldêrada di
bunzu, espetada de bunzu, caril di bunzu, bunzo refogado com coco, bunzu
refogado sem coco. (…) Tera mudô muiiito, Apolinária. Quem diz qui terá non
mudô, tá com olho fêchado ô tá a vê pulitika só”.
Ainda um interessante conjunto de três, sobre o «Lôgozo sapiens», o «Lôgozo médio» e o «lôgozo subalterno». A tipificação clara daqueles cidadãos a que se dá o nome de “chicos espertos”, perfeitamente definido o estrato social de cada um. O último, particularmente, faz-me lembrar quase como que o «bisneiro» descrito por Lúcio Amado. Convém esclarecer que «lôgozo», na língua forra são-tomense, é o nome de uma personagem ludibriadora que São Lima atribui ao Txiloli, a mais importante manifestação teatral (de rua) de São Tomé. Contudo, há também quem a atribua a uma personagem do «Dansu-Kongo» que passa de guardiã a usurpadora.
Para terminar volto à questão de o jornalismo
ser ou não literatura. Eu acho que é ou, pelo menos, deveria ser. Grandes e
considerados jornalistas o disseram. E também Frederico Gustavo dos Anjos, no
seu prefácio, considera que “Este livro é, para mim, uma linda poesia! No que
tem de cor, de palavras, e do que tem para dizer aos leitores acerca da sua
autora, da sua realidade e dos seus sonhos ou das suas aspirações”. E já que
estamos perto da «Quadra Pascal», fica a memória da Conceição Lima sobre o
sábado de aleluia e a Sexta-Feira Santa nas Ilhas: “Quando eu era pequena, parecia que até a natureza ficava melancólica,
que os ramos e as folhas das árvores não se mexiam, não havia vento, nem brisa.
Hoje, as árvores mexem-se alegremente, o vento faz dançar os seus cabelos. Se calhar,
eram os meus olhos que viam a natureza através do profundo recolhimento dos adultos,
em estado de luto pela morte de Cristo”.
Vão gostar de ler e de perceber este MUNDO VISTO DO MEIO, que a Conceição Lima fez publicar na Caminho e que, recentemente, foi apresentado em Lisboa.
António Bondoso
Moimenta da Beira e Vila Nova de Gaia, Março de
2023.
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