A PROPÓSITO DO 38º ANIVERSÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DE S.TOMÉ E PRÍNCIPE.
12 DE JULHO DE 1975.
Escrevi "Escravos do Paraíso" para assinalar os 30 anos da independência; fiz publicar "Seios Ilhéus" para marcar o 35º aniversário do acontecimento; provavelmente inicio hoje um capítulo do que poderá vir a ser mais um contributo para dar a conhecer as ilhas do meio do mundo:
Eu, na ponte da Boa Entrada, com minha mãe e minha irmã.
VIAJAR HÁ 60 ANOS...
...ou de como era difícil "emigrar" para África.
Verão de 1953. Não dos mais quentes de que possa haver
memória mas, mesmo assim, na ponta de Sagres foram registados 31 graus célsius
– centígrados, dizia-se na época.
Nos três anos da minha inocência, a bagagem que
transporto não permite reter grandes cenários, muito menos registar factos ou
imagens que se possam vir a revelar como determinantes para o meu futuro numa
outra terra longe e sobre a qual nada sabia. Dela nunca ouvira falar. Contudo,
isso não impediu o início de uma grande viagem e de uma aventura imensamente
quente e frutuosa.
Da minha casa, no
Largo das Cinco Ruas, onde nasci – saí pelo meu pé, suponho que trajado à boa
maneira domingueira da vila, sinal de uma humildade de caráter que marcou os
meus progenitores – acompanhando, penso, um misto de triste incerteza e de uma
jovem e apaixonada ansiedade de minha mãe, pelo facto de ir ao encontro de meu
pai já ausente há largos meses. Não tenho a certeza, mas creio que o estado de
espírito da minha irmã seria igualmente um misto de prazer pelo imaginário da
viagem e de contida alegria por partir ao encontro do pai.
Imagino que tenha havido despedidas, quer dos familiares,
quer dos amigos, não faltando certamente momentos de choro ou de alento,
palavras de tranquilidade e de incentivo – tudo o que é comum em circunstâncias
dessa natureza. Dos meus avós, todos vivos, talvez a separação tenha sido mais
dolorosa para os maternos. Era mais uma filha que partia, depois dos desenlaces
fatais com a Céu e a Cacilda e após terem rumado ao Brasil o António e o
Manuel, sendo que o Zé tinha arranjado trabalho em Gouveia. Ficava apenas
Clementina para consolo do par Énico Félix e Augusta Soares Mendonça.
Admito, portanto, que reinasse ali, na velha casa do avô
nas Cinco Ruas, muita tristeza e imensa preocupação. Ao mesmo tempo, seria
perfeitamente natural a esperança de que tudo fosse correr bem num outro lugar
– quem muda Deus ajuda – face às dificuldades que o país atravessava depois da
II Guerra Mundial. E Salazar já estava há mais de 20 anos no poder. A
emigração, tal como hoje e talvez desde sempre, era muitas vezes a saída de
sentido único. Nesse tempo, para o Brasil e apenas em cinco anos[1950-53],
tinham já partido mais de 180 mil adultos e quase 34 mil crianças. África ainda
não era, como nunca viria a ser, o destino prioritário de milhões de
portugueses que fugiam à pobreza. O fluxo aumentaria, apesar de tudo, mas por
motivos de ordem diversa.
Só que o pai havia recebido a “carta de chamada” por
intermédio do seu irmão Zeca que, por sua vez, já partira para as ilhas do
cacau em 1949, “chamado” pelo cunhado Honorato, ali nascido e que viria a casar
com a tia Palmira – ambos de contabilidade já cumprida neste mundo,
infelizmente. Os laços familiares sempre geraram as “correntes” ou, pelo menos,
ajudaram à decisão da “escolha”.
E foi assim que, nesse verão de 1953, as minhas pernas
subiram os degraus de uma velhinha camioneta – não sei se da marca Bedford –
tendo tomado assento nessa viatura que efetuava a ligação entre Trancoso e
Lamego. Os avós António e Maria José não faltaram à saída do Largo do Tabolado,
imaginando eu – sabedor, hoje, de outras histórias – uma diferente forma de
encarar o facto. O avô paterno protagonizara igualmente uma década de trabalho
no Recife, Brasil, para onde emigrara em 1905.
Por outro lado, tendo conhecido durante largos anos as
difíceis ligações rodoviárias à cidade do Porto, imagino ainda que a viagem até
Lamego, primeiro, e depois até à Régua, antes de chegar à Invicta, não tenha
sido muito fácil. Uma dor de cabeça mais que provável para a minha mãe, apesar
de uma eventual e pequena ajuda da minha irmã Luisa, já com nove anos de idade.
Mas, até prova em contrário, admito ter sido um herói.
Da cidade do Porto a Matosinhos, ao porto de Leixões, só
o cansaço poderia ter causado qualquer outro pequeno problema. O último
percurso em terra firme, antes de embarcar no “Pátria” – um paquete de 19 mil
toneladas, da Companhia Colonial de Navegação que havia sido criada no Lobito,
Angola, em 1922. A CCN daria ainda à rota marítima de África outros navios como
o Império, no qual também viajei, o Vera Cruz, o Santa Maria – que viria a
servir de palco a uma das mais badaladas ações contra o regime de Salazar – e,
já em 1961, o Infante D.Henrique, com 23 mil toneladas. A “cereja no topo do
bolo” para ombrear com o “Príncipe Perfeito”, da CNN – Companhia Nacional de
Navegação.
Enfreitei, então, pela primeira vez o mar, mas desse
embate continuo a não ter memória, talvez pela razão de viajar instalado no
porão – que é como quem diz na 3ª classe, não sei mesmo se na 3ª classe
suplementar. Dali não se via o mar, apenas sentia os efeitos do seu ondular. E
depois Lisboa, e o mar muito mais bravo até à Madeira – antes de Las Palmas
para reabastecimento. Nove dias de viagem da qual me ficaram as imagens das
camaratas do porão, até avistar o verde das ilhas de nome santo, as ilhas do
meio do mundo no Golfo da Guiné, as pérolas de expressão portuguesa na linha do
Equador, a sul do qual dizem não haver pecado.
S.Tomé – a Ilha...apresentou-se aos meus olhos de criança
de uma forma difusa, vista de longe, pois não havia cais acostável para os
grandes paquetes. O Pátria fundeou ao largo e os passageiros foram obrigados a
efetuar um transbordo para pequenas lanchas – os “gasolinas” do Castela, soube
mais tarde – e dali uma pequena viagem até ao velho cais da então Praça do
Império. Por muito que me continue a esforçar, não me recordo de o meu pai ter
ido receber-nos a bordo. Mas certamente que foi. Era uso costumeiro,
independentemente da atitude de boa educação. E subiu as escadas do portaló e
terá sorrido quando nos viu, abraçando em seguida a mulher Virgínia e os
filhos, antes de uma saída algo “ondulante” e perigosa, graças à “calema” – a
ondulação sempre forte em alto mar, mesmo em dias de calmaria.
Também não me lembro, mas seguramente que havia tubarões
a rondar, respondendo ao cheiro e ao sangue dos restos dos géneros que eram
despejados da cozinha do navio. Um ritual sagrado do “gandú”, como aprendi mais
tarde. E nunca foi fácil desfazer essa ideia de que os tubarões estavam ali,
sobretudo, para amedrontar as pessoas. Mas nesse, como na quase totalidade dos
dias de “São Navio”, ninguém caiu ao mar. Era grande a perícia dos marinheiros
das lanchas. E todos puderam chegar ao cais da cidade, deparando com a estátua
de João de Santarém, no jardim da Praça e no qual pontuavam as palmeiras de
grande porte.
Percebi – fui percebendo – tudo isto mais tarde, já
depois de instalado numa pequena vivenda no Bairro de N.S. da Conceição, de
construção relativamente recente. A rua era ainda de terra batida, ficando
encharcada e lamacenta depois das célebres chuvadas tropicais – fortes e pouco
demoradas, a não ser naqueles dias de grandes tempestades e trovoadas de
arrancar orações ao mais cético dos não crentes.
E depois das chuvas – disso já tenho memória – era a
alegria de brincar nas poças de água barrenta, tentando agarrar aquelas
pequenas larvas saltitantes e moribundas com a rápida evaporação das águas. Em
tronco nu e descalço, usando apenas uns calções de centavos, foi uma adaptação
quase perfeita e imediata ao calor tórrido e à humidade extremamente sufocante.
E o cenário da mata do Riboque nas traseiras da casa? Convidativo à aventura e
refrescante quanto baste.
E assim se foi processando a minha integração nessa terra
longe, ficando para trás o já quase vazio reservatório da memória. As novas
imagens e as novas descobertas foram ganhando preponderância. A qualidade de
vida podia praticamente resumir-se ao meu trajeto entre o Bairro da Conceição e
a Escola Primária de Vaz Monteiro, em tronco nu e descalço e apenas com os
calções de centavos ou com as calças de um pijama desnecessário, dando com um
pequeno pau no arco, a girar, sempre a girar, até chegar à porta da escola e
dizer que queria ver a minha irmã. E depois voltava, compenetrado, passando
pelo mercado e pelas padarias da praça, pelo grande frigorífico de fazer gelo e
pela Igreja de N.S. da Conceição[onde viria a casar com a Maria do Amparo, fará
em breve 39 anos], na qual paroquiava o célebre Padre Martinho Pinto da Rocha,
que um dia disse ao Bispo de S.Tomé e Arcebispo de Luanda – “posso ser um mau
padre, mas sou um bom pai”! E foi...um pouco de tudo:- padre, pai, juíz e
outros ofícios de grande cartaz.
Por essa altura ainda não tinha “consciência” do que se
passara havia poucos meses, no Batepá, perto da Trindade. E das consequências
desse triste acontecimento, em Fevereiro, e que viria a prolongar-se por vários
meses na Colónia Penal de Fernão Dias: uma praia marcada pela revolta, pela
força brutal das autoridades e seus capangas, pela humilhação e pelo sangue
derramado da gente da terra. E das rusgas policiais para angariar mão de obra
forçada, mãos que haviam construído com sangue casas como essa onde passei a
viver. Nada sabia, ninguém me dizia...e a Ilha também passou a ser minha. E
todo o mar à sua volta!
Dela não
cheguei a tomar posse formal. Mas adotei-a de coração e ninguém levará a mal se
eu utilizar aqui o conceito da figura jurídica da “Usocapião”.
Em tempos chamei-lhe minha. (A Publicar)
Era ali que eu
existia
E tinha pela frente
o mar imenso
Com ondas de calema
e tanta espuma,
Contava
carneirinhos a perder de vista
E sonhava com os
mistérios do mundo.
Que era ali, todo
inteiro, até onde meus olhos alcançavam.
Depois... um
limitado horizonte de livros e de mapas
E barcos a cruzar o
oceano
E eu navegando
neles,
Disseram que muita
gente e outras naus
Haviam por ali
passado na aventura do saber e conhecer.
E falavam de outros
homens que, escravos,
Mais escravos
conduziam p’ra alimentar terras distantes
Comércio antigo de
Roma, Egito e tantas Áfricas.
Alguns vieram e
partiram
Outros ficaram e
quiseram
Partilhar o que não
tinham,
Muitos roubaram e
rasgaram
Nem todos souberam
amar.
Mas era ali que eu
existia...
Por isso lhe
chamava minha
Por isso lhe queria
muito.
Crescer e saber que
a pertença é relativa
Não mudaram meu
querer.
E a separação
dolorosa prolongada além do tempo
Machucou mas não
matou
Essa relação
intensa.
Aumentaram meus
afectos
Somados a outros
sonhos
A saudade serenou e
o pensamento a voar
Trouxe a Amizade de
volta no vento do furacão.
E há nomes no
horizonte
De um mesmo mar que
revejo
Com águas de outro
nome.
Longe canta o
ossóbô e o papagaio repete:
Ainda lhe chamo minha !
== A.B. (A
Publicar).
Nos capítulos seguintes – até à minha partida
“definitiva” de S.Tomé, na sequência do golpe militar de 25 de Abril de 1974 e
da chamada “revolução dos cravos” – haverá outras grandes e pequenas histórias
para contar. Até mesmo aquela de os médicos se mostrarem preocupados com a
minha magreza e aconselhando uma mudança de ares. Para a “metrópole”
rapidamente, aos seis anos de idade, a fim de ganhar corpo. Vai daí, uma nova
viagem, agora no paquete “Império”, entregue aos cuidados de um amigo que vinha
em gozo de licença graciosa, o Senhor Pereira, de Sanfins, empregado comercial
na Casa Higino Curado dos Santos.
Eu com o Sr. Pereira e o cão fiel, em frente à casa do Bairro da Conceição
António Bondoso
Jornalista – C.P. 359
Julho de 2013.
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