2015-12-04



SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE - UM PAÍS BASEADO NUMA ILHA CORAÇÃO. (I)

Há dias, passeando a minha atenção nas redes sociais - concretamente no facebook - deparei-me com esta notícia:

Projeto Meros do Brasil em expedição à pérola do Golfo da Guiné

"Em expedição ao arquipélago no mês de Novembro de 2015, os pesquisadores Nuno Vasco Rodrigues (FLYING SHARKS/MARE/IPLeiria), Jorge Fontes (MARE/Açores) e Áthila Bertoncini (UNIRIO/Instituto Meros do Brasil) realizaram uma série de mergulhos na Ilha de São Tomé e no Ilhéu das Rolas, com o apoio do Costa Norte Fishing & Diving Center para documentar a biodiversidade de peixes desse espetacular Arquipélago, objetivando a produção de um livro guia de peixes e um poster das espécies comerciais."

***** A propósito, lembrei-me do meu conto que escrevi, em exclusivo, para assinalar o 40º aniversário da independência daquele país africano de língua portuguesa, numa solicitação da CISTP - Casa Internacional de São Tomé e Príncipe - em Lisboa. 
A partir do projeto em notícia, pensei que poderia ser interessante ir revelando aqui o meu texto completo - dividido em três capítulos, apenas para não ser demasiado maçador. Hoje deixo-vos a primeira parte: 


Palestra do Projeto Meros no IDL- Instituto Diocesano de Formação João Paulo II.




UMA “ILHA CORAÇÃO”…EM FORMA DE PAÍS

         No dia em que eu cheguei à Ilha, levava comigo um golfinho – o Pantufo – escoltado pelo gandu Santana e por milhares de vadô-panhá, aproveitando uma água temperada azul cor de turquesa, apesar da calema da gravana.
         Avançámos avistando terra e encontrando refúgio numa bela e protegida baía a que deram o nome de Ana de Chaves. E ali fizemos amizade com uma encorpada tartaruga, que – desde logo – nos foi chamando a atenção para os perigos que a sua espécie ia correndo, pois era evidente o aumento da sua importância comercial, com o aproveitamento da sua carapaça para a elaboração do tradicional artesanato. Para além da maravilha culinária dos seus bifes, igualmente. O problema não estaria nos exemplares mais idosos, mas sim nas jovens tartaruguinhas que mais facilmente eram apanhadas e tinham boa cotação no mercado. 
         Eu sei que o meu destino é a morte lenta – dizia a velha tartaruga talvez com 80 anos…e de tanta idade já nem o nome lembrava – imaginando-se virada de barriga para o ar, posição aflitiva e acrescida da fatal falta de água, ali no passeio da marginal no Bairro de S. João.
         Havemos de tomar providências para que isso não aconteça – logo disse o gandu por entre a sua forte dentadura, que lhe permitia essa sua atitude tão protetora quanto arrogante. Mas o golfinho, mamífero de uma generosidade e de uma alegria quase sem limites, embora sabedor da maldade humana própria de todos os tempos, logo foi avisando: olhos bem abertos, todos os sentidos apurados para evitar redes, arpões ou quaisquer outros objetos. Ainda vão passar muitos anos até que alguém se interesse verdadeiramente pela vida marinha, pelo ambiente, pelo turismo sustentável. E as nossas amigas tartarugas poderão estar rapidamente numa era de perigo de extinção.
         Quanto tempo passaria, de facto, até que se ouvisse falar de ONGs, da Marapa, da Terra Crioula, do programa Tatô, da Terra Verde, do Jalé Ecolodge, do turismo solidário e do ecoturismo.
         Entretanto, propôs o golfinho, talvez fosse interessante irmos explorar este ambiente, sempre bem perto da costa. E lá partimos com o gandu, atentos mas brincando sempre. Deixámos as águas tranquilas da baía e enfrentámos a tradicional ondulação quente que chegava do Golfo.
         E fomos navegando primeiro para norte passando perto do aeroporto, na Praia Gambôa, e depois em Diogo Nunes no canal frente ao Ilhéu das Cabras, antes de chegar a Fernão Dias. Ora aqui está uma praia com história de sangue – disse o gandu Santana, fazendo alarde das suas características de excelente e temível predador dos mares. Como assim? – interrogou o Pantufo. E Santana explicou brevemente, frisando ter sido ali que, em tempos, se derramou muito sangue humano inocente, dando corpo ao que ficou conhecido na história como o “Massacre de Batepá” – embora esta povoação ficasse bem no interior da terra que os dois, agora, me ajudavam a explorar. Centenas de pessoas humilhadas e torturadas pelo regime colonial português – acrescentei eu. Pantufo deu duas piruetas para afastar um arrepio…indicando quase de imediato o rumo a continuar. Vamos à procura de lugares bem mais agradáveis – disse. Mas a História, retorquiu Santana, não deve ser esquecida. Por isso falamos nela – frisei! Continuando a nadar muito perto da costa, para nos orientarmos melhor, passámos a ponta Cruzeiro e a praia dos Tamarinos notando que o rumo havia começado a “desviar-se” para Oeste. E Morro Peixe ali tão perto! De instituição penal, no período colonial, a projeto de paraíso para as tartarugas…foi um longo caminho. Que é necessário continuar a trilhar apesar das “dificuldades” que se apresentam. Nem sempre é fácil conciliar economia, sobrevivência e biodiversidade – particularmente nos PEID, Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento. Mas como diz Brígida Rocha Brito, dada a riqueza dos ecossistemas e da paisagem, as ilhas do arquipélago santomense são dotadas de biodiversidade e endemismo, factores fortemente potenciais para a prática de actividades turísticas de observação em contexto de lazer. O que, de certa forma, se enquadra perfeitamente nesta ação exploratória em que me acompanham o Pantufo e o Santana.
         Não sei ao certo quantas milhas já teremos “palmilhado”, desde que deixámos a velha tartaruga na baía de Ana de Chaves – disse Santana. Nadamos mais um tempo…e antes do anoitecer descansaremos – propôs Pantufo. E eu, já há muito “afastado” deste mar e exausto, rejubilei com a ideia. E assim chegámos à Lagoa Azul, mesmo junto ao Morro Carregado. Mas o adiantado da hora e o sol a despedir-se já não nos permitiu saborear a delícia do azul do mar e a transparência da água naquele local tão tranquilo e tão sereno. E onde eu pratiquei até pesca submarina com o amigo Sobral – um verdadeiro mestre – e onde me recordava de ter sido enganado por um tubarão, não deixei de o frisar a Santana, que nos levou todo o peixe já capturado nesse dia já longínquo do século passado. E até a “bóia” onde o peixe estava pendurado!
         Vós, humanos – devolveu Santana – tendes a convicção de que sois mais “frescos” do que nós. E logo neste ambiente marinho, ao qual eu e o Pantufo estamos perfeitamente adaptados. Para nos acompanhar, e mesmo com muita dificuldade, vocês precisam de barbatanas artificiais e de garrafa de oxigénio. Basta olhar para ti, neste momento. Vamos procurar um nicho tranquilo – decidiu o Pantufo – para depois podermos apreciar o luar.
         Que saudades tenho eu – pensei – de uma fresca cerveja Cuca ou Nocal que vinham de Angola. Mas hoje, com a sede que este mar salgado provoca, não diria que não a uma antiga Ceto, Rosema ou à nova Creola de fabrico local. Dizem mesmo que esta é uma das melhores de África. Não deixa de ter influência a qualidade da água, penso eu. E logo me vêm à ideia tempos da minha juventude adulta…quando o “carocha 15-50” transportava uma grade, com gelo, e era só decidir o melhor local à beira-mar. Refrescávamos ideias e imaginávamos o mundo.
         O nascer do sol, como agora, único no mundo! É o coração a falar, claro. Mas não haverá muitos. Pantufo e Santana já se exibiam em acrobáticos saltos ou em velozes correrias, absorvendo os ricos raios de sol de um dia magnífico a projetar-se. Concordando com a beleza da Lagoa Azul, não deixaram de me desafiar para prosseguirmos a tarefa exploratória. E assim se passaram a praia das Plancas e a Ribeira Funda, pressentindo ao longe o som de alguns cetáceos em cruzeiro, para chegarmos antes do “almoço” à cidade das Neves. E de novo a sagacidade do tubarão Santana a lembrar que ali, nas Neves e na praia Rosema, houve em tempos idos um importante centro de “retalho” de baleias capturadas, apesar de atualmente apenas se notar o cheiro de combustíveis.
         De facto – de acordo com um estudo de Inês Costa de Carvalho [2004] para o Instituto Superior de Psicologia Aplicada, de Lisboa, sobre as baleias corcundas – a caça à baleia nesta região durou praticamente uma década, até finais dos anos 50 do séc. XX, tendo sido capturados cerca de 800 exemplares que renderam 3.500 toneladas de óleo. Mas hoje as baleias estão a regressar e são uma atração turística, apesar de o Japão insistir num acordo para desenvolver a caça aos cetáceos. Apenas pensei nisto, não o referindo em voz alta para não preocupar e entristecer de novo o golfinho Pantufo.
         Mesmo com cheiro a crude, o “almoço” nas Neves incluiu um excelente “peixe com banana” – regado com óleo…de palma – antes de nos fazermos de novo “ao mar” em direção ao Padrão [da descoberta], constatando que o rumo era já nitidamente para sul.
         Tem todo o aspeto de ser uma ilha – considerou o Pantufo, apurando o seu “radar” essencial. Para Santana isso era indiferente, desde que houvesse mar tépido e muito peixe para o seu sustento. E não era de cerimónias. Tanto mordiscava uma garoupa como podia trinchar uma corvina. Sem falar de algumas novas espécies que nos últimos anos foram encontradas nas águas do arquipélago, como por exemplo um peixe papagaio de 80 cm, um peixe-góbio ou uma pequena raia elétrica.  
         E a um ritmo de cruzeiro, simpaticamente imposto por Santana e Pantufo em atenção, sobretudo, à minha condição de peixe fora d’água, passámos Esprainha, o Padrão, a Ponta de Diogo Vaz…e aqui até nos afastámos um pouco da costa para poder ter a visão magnífica [em puro contraste com a secura da de Morro Carregado] de uma selvática vegetação luxuriante que subia numa cascata verdejante até quase ao Pico, lá no alto, embora menos visível na época das chuvas devido à densa névoa. Bem medidos, são 2024 metros desde o nível do mar [mas há quem diga 2027] e ali à volta há ainda o Pico Pequeno, com 1983 m, Ana de Chaves, com 1630, Calvário, com 1600 – antes da cadeia montanhosa se alinhar para o sul com Pirâmide, Charuto, Cabumbé e Vila Verde, culminando com o majestático cenário dos fonólitos Cão Grande, 663 m ao nível do mar [420 a partir da base] e o Cão Pequeno, apenas a 390 m de altitude e já muito perto do Ilhéu dos Cocos e da Praia de Massacavú. Ainda mais perto da costa uma referência para as Mamas de Massacavú, acima dos 300 metros.
         Não foi intencional este adianto, nem tão pouco um desvio de rota e muito menos um esquecimento dos companheiros Pantufo e Santana. Apenas um déjà vu de uma outra época que não é fácil esquecer. Atravessar de Nova Moca para Diogo Vaz ou Monte Forte, atravessar de Java para Bindá ou Santa Catarina…


António Bondoso
Jornalista

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