SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE - UM PAÍS BASEADO NUMA ILHA CORAÇÃO (II)
Aproveitando a circunstância de hoje se falar de sabores - quá tela nom sá buá - penso ser oportuno dar sequência ao texto do meu conto UMA
“ILHA CORAÇÃO”…EM FORMA DE PAÍS:
(...)"Não
foi intencional este adianto, nem tão pouco um desvio de rota e muito menos um
esquecimento dos companheiros Pantufo
e Santana. Apenas um déjà vu de uma outra época que não é
fácil esquecer. Atravessar de Nova Moca para Diogo Vaz ou Monte Forte,
atravessar de Java para Bindá ou Santa Catarina…Seja como for, depois de Diogo
Vaz continuámos a seguir a morfologia dissimétrica da costa, passando Santa
Catarina e depois a Ponta Furada, entre os rios Lembá e Bindá. Era mais ou
menos por aqui, frisei aos meus companheiros de aventura, que terminava a
estrada em direção ao sul. E é pena, tendo em conta as maravilhas que se nos
apresentam antes de chegar a Portalegre. Um projeto nunca concluído – esse, de
uma estrada de cintura completa.
Mais para sul, o radar de Pantufo adivinhou o Ilhéu de S. Miguel, mesmo em frente à “localidade” com o mesmo nome
e onde, em tempos idos, o exército português manteve um pequeno destacamento.
Igualmente a enseada de S. Miguel – mais um dos muitos e variados “acidentes”
físicos que enriqueciam a costa, recordando por exemplo a Lagoa Azul e a praia
Córacóra, e deixando adivinhar o que viria a seguir. Depois do Ilhéu Gabado a Ponta Azeitona, e a sul da já referida Massacavú a ponta da Praia Xixi e a enseada da Praia Vá-Inhá, antes de chegar ao Ilhéu Jalé e à já famosa Praia Jalé.
Que maravilha – disse Pantufo entusiasmado. Aqui…cheira-me a
“santuário”! E que bonito é ver as dezenas de novas tartarugas a tentarem
apanhar uma corrente que lhes ofereça um destino duradouro. Trocista, Santana ainda tentou a sua chance: entre tantas…não poderei trincar
duas ou três? – perguntou. Nem penses – disse o Pantufo, zangado. Se o fizeres, expulsamos-te desta “expedição”! Já
pareces um daqueles turistas invasores “psicocêntricos”,
sem cultura. Vê se passas a ser mais responsável e mais amigo dos ecossistemas.
Santana recebeu e percebeu a
mensagem. E não deixou de referir o seu conhecimento das ideias do explorador Paul Rose – defensor da chamada economia azul, que tem por objetivo
manter o oceano saudável, pensando e agindo de forma sustentável. “Sem perder a
identidade de cada país e o coração de cada povo” – diz Paul Rose – é
importante que os países entendam o oceano como um todo!
Depois destas observações de Santana, ficámos todos mais tranquilos e
resolvemos descansar ali, bem em frente ao Jalé
Ecolodge – um projeto de ecoturismo de base comunitária, financiado pelo Fundo Francês
para o Ambiente Mundial, através da Rede das Áreas Protegidas da África Central. Hoje, o projeto é executado pela MARAPA (Mar Ambiente e Pesca Artesanal),
uma ONG que apoia iniciativas locais de desenvolvimento sustentável e tem
atividades na preservação de tartarugas e na proteção do meio ambiente das
comunidades de Porto Alegre e Malanza.
Esta região do sul…e aqui já
o Pantufo havia afirmado a sua ideia
de que o pedaço de terra que explorávamos era certamente uma ilha…que é marcada
sobretudo pelo rio e pela lagoa Malanza, é
uma das várias áreas pantanosas do território – em parte também devido à
invasão do mar durante as marés vivas. Daí resultou um ecossistema particular,
pelo que se decidiu – e bem – criar a Zona
Ecológica de Malanza focada na observação do mangal e da biodiversidade. E
em termos turísticos há mesmo uma parceria entre o Mangrove Tour e o Jalé
Ecolodge, o que só beneficia os pescadores da região que proporcionam aos
turistas passeios de canoa tradicional com remador. É evidente que estes
pormenores não são percetíveis, quer a Santana,
quer a Pantufo, com a sua atenção
mais virada para o mar.
Novo dia e nova “caminhada”…passando pela Praia Piscina, antes de entrar no canal
do Ilhéu das Rolas, onde há muitos,
muitos anos, alguém diz ter observado um “combate” mortal entre uma baleia e os
seus filhotes e um peixe-serra. Como
sempre, a eficácia do “radar” de Pantufo
ao descobrir o Ilhéu onde passa a “imaginária” linha do Equador, no meridiano
dos “zero graus”. O golfinho sugeriu uma aproximação, tal como Santana, mas eu chamei a atenção para o
atraso que isso causaria à nossa tarefa exploratória da costa. Disse-lhes
apenas que o ilhéu possuía dois cones vulcânicos com cerca de 95 metros, cada
um com uma cratera com o diâmetro de 90 metros. Mais pequenas do que a da Lagoa
Amélia, na zona do Pico, naturalmente.
O turismo, ali no Ilhéu, viria muito mais tarde com a
aventura empresarial de Cantanhede e à qual o Grupo Pestana daria continuidade,
apesar da dupla insularidade e de outras dificuldades nem sempre suscetíveis de
ultrapassar. Há muito, muito tempo – disse-me um dia o saudoso Victor Cruz [e
está escrito pela minha pena em Escravos
do Paraíso] – o faroleiro Almeida esteve lá vinte anos sem falar com o
administrador da roça, o senhor Castro, apenas por se terem desentendido quanto
ao transporte de um bidão de petróleo até ao farol.
E agora, sussurrei ao Pantufo
e ao Santana, há os perigos da pesca
desportiva em alto mar. O melhor é continuarmos a nossa exploração da costa da
ilha. Temos já à vista a Praia Inhame,
antes de uma série considerável de Pontas
a desenhar o perfil do sul da ilha. Depois entrámos na enseada de Lògológo onde nos acolhe a Praia
Micondó. Desta enseada, pensei, parece mesmo ter saído o Ilhéu das Rolas. Mas a existência de Ano Bom, mais a sul, pode
levar a outras suposições. E eu, confesso, não tenho conhecimentos de geologia
que me permitam seguir essa linha de pensamento. Talvez seja preferível ficar
com a ideia de que, na sua infinita bondade, o Criador ali tivesse colocado este maravilhoso pedaço de terra para
– simbolicamente – separar o bem do mal. Provavelmente não por acaso, diz
também uma canção brasileira que não há
pecado a sul do Equador. Chico Buarque leu num livro de seu pai, Sérgio,
que um cronista holandês teria registado um ditado em 1641 e que dizia: é como se a linha que divide o mundo em dois
hemisférios também separasse a virtude do vício. A melodia, de 1973,
transforma e amplia a ideia de que, para os desbravadores com espírito de aventura, este trópico era visto no Velho Mundo como
verdadeiro antro de perdição. Já para os estrangeiros exploradores, estas
terras sem instituições sociais nem religiosas eram o paraíso da utopia e
liberdade, onde nada era proibido.
E prosseguimos, contornando a região de Ponta Baleia,
evitando as Pontas Càvingui, Baleia e Geumbú e, já numa trajetória ascendente, as Pontas Barro Bóbó e Barro Preto – antes de atingirmos a Praia Grande e o Ilhéu Quixibá. Esta palavra, expliquei
aos meus companheiros de aventura, significa “banana-prata”, mas hoje decidiram
passar a escrevê-la utilizando a letra K,
pelo que há já muita gente a dizer kitxiba
ou simplesmente kixiba.
Recordo igualmente o romance que Alexandre Pinheiro Torres
fez publicar em 1977 na Moraes, A Nau de
Quixibá [e que a Caminho entendeu reimprimir em 1989] – uma história
centrada numa roça de S. Tomé e vivida em 1939 entre o narrador, filho do
administrador da roça, e uma jovem filha do guarda-livros da empresa. Ele,
jovem membro da Mocidade Portuguesa e os pais anti-situacionistas, dão corpo a
uma confusão de sentimentos e que vem a culminar na queima da farda da MP e na
destruição do esqueleto de uma nau ali naufragada há 300 anos – símbolo dos
naufrágios dos regimes coloniais.
E como não podia deixar de ser, veio à conversa – por minha
sugestão – o pormenor de uma lenda que refere um naufrágio nos ilhéus das Sete Pedras [a alguns quilómetros do
local onde nos encontrávamos, ligeiramente para sudeste] de um barco negreiro a
caminho do Brasil. Dos sobreviventes teria resultado o estabelecimento de uma
comunidade de angolares nessa região sul da ilha grande. Sem base documental
que a sustente, essa hipótese teria agradado ao regime colonial que, de resto,
sempre a acarinhou e ampliou. Mas há estudos recentes que rejeitam essa tese,
tal como uma outra hipótese “nacionalista” de a ilha grande ser já habitada
aquando da chegada dos portugueses. O investigador Gerhard Seibert, defendeu em
2004 – citando Isabel Castro Henriques [2000 e 2004]; Jan Vanzina [1996] e M.J.
Trovoada et al [2001,2002,2003] – a
sua inclinação para a provável conjugação de fatores que determinaram a
descendência dos “angolares” de uma comunidade de cimarrones ou fugitivos macambos
de plantações e engenhos de açúcar, onde eram sujeitos ao regime de escravidão.
Colocados perante estas dúvidas, é natural que Pantufo e Santana se
sentissem um tanto ou quanto confusos. E por um bom período nadaram em
círculos, permanecendo eu no meio do “palco”, esperando talvez que me coubesse
a tarefa de tomar uma posição sobre as hipóteses levantadas.
Para não perdermos mais tempo e de modo a podermos descansar
mais a norte, entendi comunicar-lhes a minha inclinação para a maior
sustentabilidade da tese dos fugitivos macambos,
tendo em conta a evidência histórica e linguística. Mas sempre fui dizendo que
lhes caberia, querendo e quando oportuno, estudar a longa e interessante
bibliografia sobre o assunto, não esquecendo a lenda do herói/rei Amador que
muitas preocupações terá causado às autoridades coloniais. Pantufo ainda guardou as suas dúvidas no meio de tantas teorias não
insofismavelmente documentadas, mas Santana
rejeitou a tese/lenda do naufrágio: mesmo que alguns tivessem sobrevivido –
disse – morreriam de cansaço antes de alcançar terra, pois é quase impossível
enfrentar a forte ondulação que ali se manifesta ou, por outro lado, os meus
antepassados teriam dizimado os mais afoitos e resistentes."(...)
=== António Bondoso
Pintura de Maria Teresa Bondoso
António Bondoso
Jornalista
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