2017-01-22

DA ROÇA…
…de uma péssima ideia colonial a uma desleixada atitude de um país independente.
Percebe-se o sistema e a época…condena-se a violência e os efeitos.
Percebe-se a revolta e a libertação…condena-se a destruição do património e da história.



         Cidade-Estado ou um Estado dentro do Estado, a Roça desempenhou um papel crucial e secular na economia das Ilhas do meio do mundo, mesmo sendo evidente o mau espírito reinante: a ideia, o sistema, a propriedade, os objetivos, a prática, a brutalidade do trabalho serviçal, eram amenizados a espaços por força de circunstâncias incontornáveis. Como dizia Luís Cajão a Michel Laban, por exemplo:- E qual o meu espanto quando chego ao Rio do Ouro e vejo uma enfiada de palmeiras imperiais, uma casa digna de um príncipe, um comboio de bitola normal, música nas sanzalas, jardim zoológico para as crianças, um hospital – tomáramos nós na Metrópole, sei lá, nas Caldas da Rainha, na Figueira da Foz ou em Aveiro…ter hospitais assim, daquela categoria!”.
         Mas os ecos da Roça foram de tal ordem…que ainda hoje o tema reclama emoções diversas, contraditórias. Basta lembrar a poesia de Conceição Lima: Perguntam os mortos:/Porque brotam raízes dos nossos pés?/Porque teimam em sangrar/Em nossas unhas/As pétalas dos cacaueiros?/Que reino foi esse que plantámos?
         Ou a roça…«espaço físico e psíquico de homens-máquina, ao serviço da ganância de alguns que, longe, ostentavam a riqueza suja de um degradante sistema humano». Alda do Espírito Santo recorda Henry Nevinson que, em 1906, denunciava “o ignóbil trabalho escravo nas roças de S. Tomé e Príncipe, onde o cacau e o café atingem cifras consideráveis. Os nossos irmãos de Angola e Moçambique e mais tarde de Cabo Verde sofreram anos de aviltamento no inferno das roças das grandes Companhias Coloniais, com sede nas suas metrópoles”.
         Voltando ao relato de Luís Cajão a Michel Laban… “De Moçambique apareceram-me alguns em cumprimento de pena: iam cumprir pena nas roças! Tratei-os sempre a todos da mesma forma. Todos. Com o mesmo amor, a mesma ternura. Meu Deus, eu tive quando me vim embora, no aeroporto da ilha do Príncipe, trezentos trabalhadores e as suas famílias a dizerem-me adeus (…). Foram bem tratados: nunca ninguém os terá tratado melhor”.
         Os moçambicanos, recordou-me em tempos Victor Cruz, «eram trabalhadores extraordinários. Havia um que fazia a tarefa dele e a da mulher, por exemplo trinta buracos vezes dois para plantar cacau. Esse tinha ido condenado para S. Tomé (Colónia Açoriana) com uma pena de 12 anos. Na sua terra era guia de caçadores! O que o terá levado ao degredo foi eventualmente uma simples escaramuça, mas conseguiu regressar a Moçambique!».
         Mas os ecos da Roça não se esgotaram. Depois do mais completo estudo de Francisco José Tenreiro (1961) – para quem a roça «era a base de povoamento de toda a ilha», outros se seguiram mais recentemente. Por exemplo As Roças de São Tomé e Príncipe, de Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, com fotografias de Francisco Nogueira. E depois de alguns romances – como os coloniais de Fernando Reis [Roça], Sum Marky [A Ilha do Santo], de Rafael Branco já no pós independência [Makuta – Antigamente Lá na Roça] e em 2008 O Feitiço das Ilhas do Cacau, de Hermínio Ferraz… eis que agora se apresenta No Tempo Das Roças, de Francisco Assis Brito – um clérigo natural de Rio do Ouro, Guadalupe, onde nasceu em 1966. Segundo a sinopse a temática é idêntica, vista por outros olhos, mas “Deplora, igualmente, a desvalorização, destruição e abandono das ricas infraestruturas das antigas roças, que podiam ter continuado a contribuir para a beleza e o desenvolvimento dessas ilhas maravilhosas do Equador”.
António Bondoso
Jornalista
Janeiro de 2017




2017-01-11





MEMÓRIAS DE MIM – 1.

2017 não é um ano qualquer. Significa muito para mim.
E começa praticamente com mais um aniversário meu. O 67º! Que, não sendo embora um número redondamente perfeito, reporta a factos de boa memória.  
Há 50 anos…fazia eu mais um cruzeiro de sonho em oito dias no Atlântico…para tomar conhecimento mais profundo sobre este promontório onde habito hoje…
Há 50 anos…os meus pais ainda eram vivos. E depois dessa viagem de barco, com eles me encontrei em Moimenta da Beira, recebendo de presente da mãe um fio de ouro que ainda uso.
Por essa altura foi-me dada autorização paterna para fumar…
E o meu pai, se fosse vivo, completaria em Junho 100 anos! No dia seguinte ao “milagre de Fátima”.
Quando me lembro dele o que me vem à ideia?
No imediato a viola…e quando me levava pela mão ao Dramático para os ensaios de algum espetáculo (acompanhava no fado o guitarrista Pinto Falcão), e o futebol inevitavelmente (não só o FCPorto mas também o CDR de Moimenta da Beira, o Sindicato e o Andorinha em S. Tomé), o sentido de humor, o sorriso maroto…algum “temperamento” à mistura, claro. O árbitro era o principal adversário. Não deixa de ser uma herança que eu prezo.
Lembro-me de ter vivido ao seu lado, na praia de Diogo Nunes, a alegria – igualmente o sofrimento do que viria a ser conhecido como o caso Calabote – da vitória portista no campeonato de 58/59. E depois…toda a travessia do deserto que durou 19 anos. Mas felizmente ainda viveu para celebrar novos títulos e – o mais importante – ver o clube como Campeão Europeu.
E vem-me igualmente à memória a sua habilidade intacta de alfaiate, atividade que havia exercido na adolescência e em jovem adulto em Moimenta da Beira, antes de iniciar funções na Conservatória do Registo local – as quais viria a desempenhar na Conservatória do Registo Predial em S. Tomé, de 1952 até à data do seu regresso a Portugal em finais de 1974. Pois exatamente no arquipélago do Golfo da Guiné, quer na minha infância, quer nos primeiros anos da adolescência, o meu pai ainda era exímio naquela arte, nomeadamente na confeção de calças ou calções para mim. Por essa época usava-se muito o caqui.
Mas a “indumentária” não era, nesse tempo de adolescência, uma questão essencial. Uma simples t-shirt bastava, facilitando um reparador banho de mar em qualquer altura ou a permanente disponibilidade para um jogo de bola.
Há 50 anos…iniciava igualmente a minha atividade radiofónica em S. Tomé. E como ainda tenho presente os meus sprints na bicicleta do meu pai, quando saía das aulas no Liceu de D. João II para chegar à tabela ao Rádio Clube a fim de encerrar a emissão do espaço do almoço, exatamente às 14 horas. Gratificante essa experiência – sendo certo que acabaria por abraçar a carreira na então Emissora Nacional, em 1969, depois da transformação do Rádio Clube em Emissor Regional. Nem sempre com um sorriso feliz, pois logo no início houve uma crise de relacionamento com um elemento da “equipa de transição”, resolvida algum tempo depois. Tudo havia começado, contudo, ainda no tempo da Voz da Mocidade – através de um programa semanal. Uma equipa que recordo com saudade igualmente.
E agora – 50 anos depois – empurrado para uma aposentação antes do tempo, aqui estou neste Porto de abrigo, felizmente acompanhado pelo amor e pelo carinho indefetíveis da minha mulher, do meu filho e mais recentemente também da nora, escrevendo, escrevendo sempre, registando memórias que possam servir no futuro. E algumas amizades, claro, que fui cultivando ao longo dos anos. E que espero manter, na certeza de que o caminho se faz caminhando, nunca isoladamente. Há igualmente outros familiares a quem dedico amizade, uns mais perto alguns mais longe pelas circunstâncias da vida de cada um.
Tenho memórias, tenho esperança. Que o significado de 2017 se estenda e se aprofunde, permitindo atapetar uma estrada de vida ainda incompleta!
António Bondoso

Janeiro de 2017

2017-01-09


SEJA-ME PERMITIDO CHORAR…
…ou a dignidade de ser livre! 

A sensibilidade pode ser inata mas o carácter definidor de um ser digno e livre é percebido e alimentado, formado e enformado, baseado na instrução, na educação, na cultura e na tolerância, numa ideia consistente de justiça moral e social – valores conquistados ao longo da vivência de cada um. E tudo vale bem melhor quando se nos apresentam exemplos vivos que marcam profundamente.
         Mário Soares foi um dessas imagens inspiradoras. Que aprendi a perceber e a respeitar, sobretudo depois de compreender os diversos tempos da sua luta, numa análise desapaixonada da conjuntura – interna e externa –de cada época.
         Não tenho chorado muitas vezes ao longo da minha vida. Para além dos momentos particulares de tristeza quando perdemos a mãe ou o pai, ou até de alegria quando nasce um filho – comuns a qualquer ser humano – tenho vivido algumas situações propiciadoras de uma lágrima. Porém, chorar de indignação, de raiva ou de impotência não tem sido frequente. Aconteceu nos últimos cinco anos com a política dos cortes cegos nas pensões, que motivaram manifestações gigantescas de protesto no país – como eu supunha já não ser necessário – e verifica-se agora com o desaparecimento físico de Mário Soares. É sobretudo um choro de preocupação. Vai-se esgotando o reservatório de referências, não só em Portugal e no resto da Europa mas também no mundo.
         Mário Soares esteve sempre um ou dois passos à frente da realidade, antecipava o futuro. Como foi o caso destes mais recentes tempos de crise internacional que, inevitavelmente, se atravessaram no caminho do país. E depois, essa UE sem rasgo, sem liderança sem visão, amarrada a clichés de uma ortodoxia neoliberal altamente nociva. Mário Soares avisou, teceu críticas, sempre dois passos à frente. Foi um combatente excepcional pelas liberdades, correndo riscos por ideais em que acreditava. E um lutador até ao fim pelos valores fundamentais da humanidade. Ao contrário do que outros disseram, sou de opinião que não há momentos “infelizes” ou “absurdos” num combatente político. As convicções de cada momento podem causar dissabores, mas tudo se ergue no minuto seguinte…Foi assim com Mário Soares. Por isso é que eu digo e repito – preocupa-me o futuro. Obrigado Mário Soares pela liberdade de poder escrever este texto.
António Bondoso
Jornalista
Janeiro de 2017
        

         


2017-01-01

NESTE PROMONTÓRIO...NADA DE NOVO!

Foto de Ant. Bondoso.

Acordo, estou vivo. Apalpo a moleirinha, belisco o pulso e dou comigo a ouvir um centenário comunicado do porta-voz da unidade hospitalar em que se transformou este imenso Portugal, este promontório mais ocidental da Europa.
         Ele é o vírus H3N1 – a ou b tanto faz – ele é a corrida às urgências, mas sem vítimas do terrorismo, para desespero dos pés de microfone, ele é os aumentos do gás e da água, do bilhete do elétrico ou do metro, dos combustíveis que fazem mexer a geringonça de cada um, ele é o IMI de um qualquer casebre virado ao sol e à praia, virado aos montes ou aos baldios que são do povo.
         Acordo e estou vivo. Não é preciso ser o médico a dizer-me, constato eu no alto da minha sabedoria. Mas há qualquer coisa que me escapa…apesar do latido faminto e sedento de um cão da vizinhança que aguarda a chegada dos donos que foram passar o ano fora. É que neste promontório mais ocidental da Europa nada mexe. Nem o vento nem a imaginação, nem as águas do rio nem o mar que sempre nos levou longe, nem os salários que fazem mover a economia. Ninguém se lembra dos anos de sacrifício, ninguém se recorda dos lamentos e das vidas destruídas. Nada de nada. Nada se mexe. Nem o futebol – agora que o tempo dos bons rapazes voltou ao Porto – nem a política em ano de eleições autárquicas, todos se vão acomodando ao saldo zero das contas de tantos bancos da nossa infelicidade.
         Acordo…e já não sei se estou mesmo vivo ou se apenas sobrevivo, acordo e não me sai da cabeça o som do porta-voz a repetir a estabilidade do coma profundo. É de facto este o estado deste promontório mais ocidental da Europa. Em coma e de corações gelados, apesar do fogo de artifício que foi estourando um pouco por todas as terras. Toneladas de estrelas que não minimizam a sobretaxa do IRS que muitos vão continuar a pagar, talvez até à venda definitiva do Novo Banco, sabe-se lá! E é o ano do centenário de Fátima, e é o primeiro ano de António Guterres como Secretário Geral da ONU apelando à Paz no mundo, neste planeta esventrado por guerras sucessivas e chorado por migrantes perseguidos e torturados.
         Acordo…e para meu espanto ainda cá estou. Felizmente rodeado por familiares e alguns amigos fiéis que entendem a força que têm a amizade e a solidariedade. Ainda cá estamos, apesar de não haver nada de novo. É preciso ser, é fundamental acontecer, cada um deve cumprir a sua parte.
Um abraço virtual e tudo de bom em cada um dos próximos dias.  
António Bondoso
Jornalista
1 de Janeiro do ano da graça de 2017.