2016-11-21



ALBERTINO BRAGANÇA - DO REAL AO IMAGINÁRIO, UMA PROSA POÉTICA SÃO-TOMENSE.




Foi no Sábado ao final da tarde. No Espaço Quadras Soltas, na Miguel Bombarda, no Porto. 
Conversa sobre:
"ALBERTINO BRAGANÇA - DO REAL AO IMAGINÁRIO, UMA PROSA POÉTICA SÃO-TOMENSE".

Obg pelo convite da PORTA XIII (Cerveira), que colaborou com Quadras Soltas e com Plataforma Cafuka neste Porto Africano de 2016.
Apesar da chuva...apareceram alguns amigos, entre os quais uma jovem estudante de STP; um artista plástico consagrado, natural do Príncipe e dois luso/são-tomenses. 


E foi com este belo cenário (África, de Manuel Xavier), em fundo, que eu respondi ao desafio de falar sobre um escritor de S. Tomé e Príncipe, tendo escolhido ALBERTINO BRAGANÇA. A prosa em destaque, embora não tivesse faltado a poesia em momentos oportunos, numa escolha dos elementos da Porta XIII - Alda do Espírito Santo e Francisco José Tenreiro. 



ALBERTINO BRAGANÇA - DO REAL AO IMAGINÁRIO, UMA PROSA POÉTICA SÃO-TOMENSE.

Conheci Albertino Bragança – ou melhor, via-o e ouvia falar dele – quando entrei para o Liceu em S. Tomé. Já ele era um dos mais velhos ao lado de Pôa, Vargas, João Santiago, Luís Moura…e, também por isso – por ser o mais velho – infundia respeito. Uma forte característica africana que, nestes tempos modernos de uma globalização tragicamente desumanizada, se tem vindo a perder. Talvez o último, mediaticamente falando, tenha sido Mandela – o Madiba. Mas como dizia, já nesse tempo (finais dos anos de 1950, princípio dos anos 60) o chamavam de “Doutor”. Albertino Bragança tinha queda para as ciências e também era um mestre na ciência de jogar à bola. Quer no Liceu, quer no Sporting (tal como mais tarde no União de Coimbra e até numa seleção militar portuguesa), jogava em souplesse, com habilidade e leveza, sem recorrer ao tradicional Xingá, jogava portanto de forma lenta, mas segura, tal como lento e seguro tem sido o seu tempo de escrita. Um artista, no lato sentido do termo. O período dos seus estudos em Portugal não coincidiu com o meu percurso de vida, circunstância que fez com que os nossos caminhos se voltassem a cruzar apenas uns bons anos mais tarde – já estava em curso o tempo da mudança social, económica e política no novo país africano de língua oficial portuguesa.

ALBERTINO BRAGANÇA

De Doutor em Coimbra (mais propriamente engenheiro) ao seu Riboque de sempre – moladô que foi – proponho então uma pequena viagem pelas palavras que Albertino Bragança trabalha e adoça, serena, poética e pausadamente, para descrever o seu país – de antes e de hoje – oferecendo histórias deliciosas. Lugares e acontecimentos, homens e mulheres de S. Tomé e Príncipe – sobretudo mulheres, como Rosa do Riboque e Aurélia (de vento), projetando um Clarão (de protesto e de esperança) Sobre a Baía. Albertino Bragança – de seu nome completo Albertino Homem dos Santos Sequeira Bragança – apesar do engajamento político e das longas pausas na escrita – ainda se debruça com muito jeito sobre a Música Popular Santomense, transformando em livro um excelente texto de uma palestra em Lisboa, na UCCLA, em 1999. 
         Chamando a atenção para o facto de não se considerar musicólogo ou mesmo um simples especialista nesse domínio das artes, o facto é que o seu ensaio – com o objetivo inicial de celebrar a figura ímpar do cantor e compositor AIDÉ (HYDER) ÍNDIA (Vaz da Conceição), o qual completaria nessa data 70 anos de vida e que foi visto como o homem da voz que é povo – o facto é que, dizia, o estudo de Albertino Bragança teve o condão de perpetuar no papel nomes de artistas e de grupos musicais de grande relevo em S. Tomé e Príncipe. Nomeadamente Quintero Aguiar, Sousa Barros (Barrinhos, como era conhecido), José Aragão, Leonel Aguiar, Álvaro Morais, Paulo Leite, Leovigildo Mascarenhas, João Seria, ou Álvaro Trigueiros, que deram corpo por exemplo aos CTT, Leonino (de onde saiu José Aragão para os Untués), Vitória, Leonenses, Sangazuza, Maracujá, África Negra, Amigos da Cultura.   
E poemas de sentido libertário, pelo menos crítico, como Gandu ou Fôça sá Pêtu.
Diz Albertino Bragança que, para os povos africanos, a importância da música ultrapassa o simples quadro do fenómeno cultural…para se confundir com a própria vida, tornando-se num símbolo de comunhão, de fraternidade entre os membros da comunidade. Tanto na solidão como no convívio, quer em liberdade quer sob a mais feroz opressão – acrescenta Bragança – o homem canta e é pela música que extravasa a alegria e a dor. E em S. Tomé e Príncipe, salienta, foi de primeira grandeza o papel social da música, assumindo-se como a grande tradutora dos complexos estados de alma e, através da sátira mais mordaz, como espaço crítico por excelência.
         Mas havia coisas que a razão do colonialismo desconhecia. GANDU, por exemplo, originariamente escrita e cantada pelo Leonino, viria a ser proibida, apesar de o poema ter aparecido sem carga satirizante. Ganhou-a posteriormente – sobretudo pela primeira estrofe, que dizia simplesmente: Dêçu fé omali / Patxi da pixi an / Gandu cu tê fama/ Só fé uê lizu/ Tomá cuá dê an …. DEUS FEZ O MAR/ e repartiu-o por todos os peixes/ O tubarão que tem fama / Após luta tenaz / Ficou com toda a parte.  

JOSÉ ALBERTO, da Porta XIII, dizendo O MAR, de Francisco José Tenreiro.

Retomando Albertino Bragança, Rosa do Riboque – o seu primeiro livro – o romance AURÉLIA DE VENTO e Um Clarão Sobre a Baía, são talvez as obras mais emblemáticas do autor. Não tanto pelos fatores de classificação literária – essa será a meu ver uma questão menos relevante – mas sobretudo pelo significado da mensagem, quer no espaço, quer no tempo. Literariamente, a escrita é apelativa, de uma erudita simplicidade: como no início do capítulo II de Rosa = A noite aproximava-se enfadonha e pesada. Uma modorra enervante impelia as pessoas para o tédio. Noctívagos incorrigíveis preparavam-se para desafiar a placidez da noite, buscando sensações fortes que pudessem contrariar a apatia que persistia em se apossar de tudo. Até porque noite de sábado [e hoje é sábado!] não era hora de ficar em casa, muito menos quando, na sede do Coimbra Nova, o famoso agrupamento se preparava para receber a visita do rival Eco da Madrugada.
         Ou no capítulo VI de Aurélia de Vento, quando escreve: As raparigas como que se deixavam contagiar pelo entusiasmo do anfitrião. O tronco inclinado sobre a mesa, Lenita aproximou-se dele e beijou-o suavemente… o rosto arrebatado pela volúpia daquele som apelativo como nenhum. Enquanto isso, Elsa estendia, apreensiva, o olhar pelo local da festa, como se estivesse à espera de que algo de inesperado pudesse vir a acontecer.
         Não sendo um homem de letras, por formação, Albertino Bragança esteve ligado à educação e à cultura desde os primeiros tempos da independência de S. Tomé e Príncipe. Não terá sido dos primeiros a regressar, mas voltou à terra no seu tempo próprio. E foi um dos fundadores da UNEAS – a União Nacional dos Escritores e Artistas Santomenses – e já em 1984 foi co-fundador da primeira editora do país, GRAVANA NOVA, com Frederico dos Anjos e Armindo Aguiar. Foi aí que iniciou a aventura de publicar Rosa do Riboque. Albertino Bragança, como um dos mais velhos, e mesmo não estando engajado nessa altura com a chamada política ativa de alto nível, nunca perdeu a noção do seu entendimento de cidadania, tendo a revelação de que era fundamental deixar às novas gerações elementos essenciais da história do país. E num mar de poetas, que já havia desde o século XIX, Bragança teve o discernimento de sistematizar a prosa – seja conto, seja romance ou ensaio – emprestando-lhe visibilidade.

 ANTÓNIO OLIVEIRA, da Porta XIII, a dizer PARA A TÂNIA, de Alda do Espírito Santo. 

Albertino Bragança – não só, mas sobretudo – promoveu, ajudou seguramente a promover o salto da literatura do novel país. Naturalmente, muito para além da chamada literatura oral e tradicional [Inocência Mata chama-lhe ORALITURA] que, em todo o caso, desempenhou – e em muitos casos ainda desempenha – um papel importantíssimo na recolha do saber e da filosofia dos forros são-tomenses. Compõem esse tipo de literatura (pode ler-se em Carlos Espírito Santo ou em Lúcio Amado) sobretudo manifestações culturais como o VÉSSU, ou provérbio; o AGUÊDÊ, ou adivinha; ou o CONTÁGI e a SÓIA, os tradicionais contos e histórias.
De outro modo, Albertino Bragança foi igualmente muito para além da prosa de ficção colonial e intervalar destacada por Inocência Mata, nomeadamente em autores como Fernando Reis, Luís Cajão e Sum Marky. Tal como não se pode esquecer Viana de Almeida – bisneto do 1º Barão de Água Izé – com os seus contos reunidos em MAIÁ PÒÇON (Maria da Cidade), em 1937, ou mesmo o jornalista Mário Domingues, que escreveu O MENINO ENTRE GIGANTES, em 1960. Mas, talvez à exceção de Sum Marky – perfeito conhecedor da realidade da então colónia, plenamente engajado com a sociedade local – a esses outros autores faltava-lhes a alma de ser, de perceber e de pertencer.
O autor de que falamos, ALBERTINO BRAGANÇA, quer pelo distanciamento conhecedor, quer pela maturidade, quer pela vivência, quer pela alma – embora já num quadro social e político totalmente diverso – foi mais forte do que outros (alguns bem jovens) que tentaram afirmar-se na ficção rompendo com o passado tradicional = casos de Frederico Gustavo dos Anjos, com BANDEIRA PARA UM CADÁVER, 1984; Rufino Espírito Santo, com A PALAVRA PERDIDA E OUTROS CONTOS, 1992; E Aíto Bonfim, com O SUICÍDIO CULTURAL, 1994 e com O GOLPE, 1996. De todos estes, Aíto Bonfim parece ser o caso mais consistente, até por uma arrojada incursão pela dramaturgia – sendo que Frederico dos Anjos adotou a importância da Poesia, e Rufino Espírito Santo, a quem reconheço um enorme potencial para escrever coisas muito belas, vai retardando a publicação dos seus textos.
Assim…tem sido Albertino Bragança a capitalizar as honras de um caminho esforçado e dedicado, na prosa…merecendo, sem favor, a designação de grande contador de histórias. Como são as relatadas em Rosa do Riboque (1985) ou em Preconceito e outros Contos (2014) – quase 30 anos a separá-las. Por isso, estas últimas vão muito para além do político. Mantém-se o retrato social das populações da cidade capital e arredores, mas o pensamento de Bragança tem impacto direto na necessidade premente de governantes e governados ultrapassarem a mentalidade de séculos.
O autor que aqui celebramos hoje, genuíno filho da terra, dedicado embaixador do Riboque (…Nen moçu libóquê na tê flogá fa…// Poderei traduzir esta expressão como a malta ou os rapazes do Riboque não estão para brincadeiras)… teve a coragem, embora já no chamado período da mudança, de criticar e denunciar todos os males do regime de partido único pós independência. Ditadura, arbítrio, perseguições, prisões…e mesmo a matança irracional de opositores de gabarito, como foi o caso de Lereno da Mata. UM CLARÃO SOBRE A BAÍA, escrito em 2005 para que tal não se repetisse, para que a mensagem pudesse iluminar os destinos das pessoas e do país. Abílio Bragança Neto, jornalista de uma produtora independente em Lisboa; sobrinho de Albertino Bragança e filho de Albertino Neto – outro dos sacrificados da impunidade do regime pós independência – escreveu que «Um clarão sobre a Baía» é simplesmente o mais importante romance contemporâneo santomense, porque quebra a regra do silêncio, a ormetá de latitude 0, sobre o mais tenebroso período da história política e social do país.»
E depois, há essa particularidade de Albertino Bragança escrever num português corretíssimo (como já vimos), utilizando simultaneamente e com muito a propósito, oportunas e graciosas expressões em língua forra de S. Tomé [sustentada hoje numa gramática simples compilada por Carlos Espírito Santo e até mesmo num dicionário santomense – português, da Editora Hedra de S. Paulo] …ou expressões em português com sotaque das ilhas, como esta:
“Credo, Beto! Você vê mesmo que isso é hora de chamar gente no mato escondido? Você teve sorte porque eu já estava pensar bastante coisa…”
E…finalmente, há ainda essa outra faceta de – sem rótulos, seja neorromantismo ou realismo – Albertino Bragança, humanista seguramente, escrever com ternura e com beleza, numa linguagem viva, de perfeita invenção poética. Ora projetando o som estridente do batuque do Danço Congo ou da puíta, ora fazendo ouvir o ritmo dolente e compassado de “pitu dôxi”.
Não será poesia… (há hoje nas redes sociais muito boa gente que plagia prosa transformando-a em poesia…) – (pg115 Aurélia) – não será isto poesia?
Para ele
Aqueles foram os dias mais penosos
Da sua vida.
A corrida desesperada
Os gemidos da sinistrada
Pela estrada esburacada.
A distância
Parecia aumentar a cada instante.
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A escrita ALBERTINIANA (ou Bragançana, se quisermos) está repleta de textos como estes (Aurora, pg 88):
          Fechada no seu quarto
O rumor da festa chegava-lhe
Como um pesadelo.
Pior do que isso
Incomodava-a até ao desespero
O riso mesmo por debaixo da janela.
Fechou-a com estrondo
Procurando desabafar com tal gesto
Toda a raiva

Que a dominava. 
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Ainda tempo para mais um poema, e ainda de Alda do Espírito Santo, a propósito do Riboque. MARIA DO AMPARO BONDOSO, dizendo DESCENDO O MEU BAIRRO. 

E disse o que penso, embora com muitas lacunas certamente, sobre ALBERTINO BRAGANÇA – ele próprio e a sua obra. 
DO REAL AO IMAGINÁRIO, UMA PROSA POÉTICA SÃO-TOMENSE.

A.B. nasceu em 1944 em S. Tomé. 
Foi Ministro das pastas da Educação, da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, deputado e vice-presidente da Assembleia Nacional.

Obras Publicadas: Rosa do Riboque e Outros Contos (1985 e 1997); 
Um Clarão sobre a Baía (2005) e no mesmo ano  A Música Popular Santomense ; AURÉLIA DE VENTO (2011); e Preconceito & Outros Contos (2014). 
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E depois falou-se muito, de prosa e de poesia, de saudades e de Cultura. E de como a Cultura continua sendo o parente pobre - também das obrigações do Estado. Haverá até o que me dizem ser uma atenção imprópria.  Mas a Cultura nunca morre. Vai refletindo apenas como nos relacionamos com o passado e como nos posicionamos no presente. Mas o panorama é pobre, continuam a dizer-me, e há até quem entenda que "essas coisas" devem ficar lá nos livros. Talvez, por isso, uma senhora de uma ONG, que vai algumas vezes a S. Tomé - apesar de não se identificar, nem a si nem à ONG - sacou da cartola a ideia de que devemos fazer alguma coisa para que não se degrade ainda mais, e não se perca, o património cultural de STP, quer seja o Museu, o Arquivo...e, no que respeita diretamente a Portugal, o Centro Cultural instalado na cidade capital. 


Foi um prazer enorme ter cá estado
Obrigado por terem vindo. 
António Bondoso
Jornalista
Porto, 19 Nov. de 2016

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