2024-02-03

 

Uma pátria «longe» inquieta.

Medimos à distância as saudades, os amores, os temores que inquietam as gentes e a «terra», medimos as mudanças que vão acontecendo, sempre à espera de uma mudança efetivamente positiva. E definitiva.

         Quem é de S. Tomé e/ou do Príncipe, como Manuel Bernardo, mede em cada ano a dimensão das tragédias do passado e questiona as mudanças que geraram expetativas diversas depois do colonialismo.  

 


 

Inquietações – muitas – em mais um «três de Fevereiro». Tlêxi Fêvêlêlu. Não querendo repetir relatos de sentido histórico sobre S. Tomé e Príncipe, concretamente passados no tempo colonial e, portanto, já muito estudados e debatidos ao longo de 70 anos – embora haja ainda quem diga que não – o objeto do meu texto neste 3 de Fevereiro de 2024 é um livro e a minha «leitura».

INQUIETAÇÕES, de Manuel Bernardo, publicado o ano passado com a chancela da “Cordel D’Prata”, apresenta-se como um livro de emoções e de sentimentos vários, destacando-se temas como o amor, a beleza e a amizade. Todos eles impregnados de «inquietações», precisamente num tempo inquieto, dizendo-nos o autor que «está tudo mudado./ O futuro de ontem mudou a mudança de outrora/ e mudou a dança agora».

Esta obra de Manuel Bernardo, a mais recente, tem uma estrutura poética de duas dimensões: uma primeira parte preenchida com a sempre difícil «arte» do soneto e, na segunda, a chamada poesia livre, nem sempre «leve-leve». Não pretendo deixar aqui uma recensão, apenas uma simples apreciação, partindo do princípio de que a «poesia» não aceita intermediário, como dizia Almada: “É directa. (…) É inútil porem-se de permeio”.

Mas li e gostei. Menos da primeira parte, é certo, tendo em conta a complexidade filosófica do autor, embora alguns sonetos me tenham capturado. Por exemplo «Se Não Amasse»… “Amaria para amar o amor que tive, surdo e mudo”; «Ser Poeta» … é “Ter no presente o futuro de ontem como mero vento”; «O Poeta» … “vive sem viver o que viveu todo entregue/ e liberta sem se libertar da própria liberdade”. Para além destes há também, para meu interesse, «Sonhos», «Inquietações» - que dá nome à obra - «Preto no Branco», no qual vinca a honra da palavra dada: “Das palavras caiu por terra a honra (aperto de mão) / Da dura realidade não sobrou do selo a procuração”.

E há um outro soneto muito particular que me transporta ao «Mestiço» de Francisco José Tenreiro. Manuel Bernardo titulou-o de “Xadrez” e escreve: «Se ganhar as brancas, advogo as negras com empate. / Se perder as negras, nas brancas tenho o meu desafogo».

Na segunda parte do livro, Manuel Bernardo liberta-se das amarras formais e solta a sua consciência/condição de cidadão implicado: por exemplo em «Antes Fosse Cego» escreve “E virei-me para a esquerda ao mudar para a direita. / Olhei para os meus extremos e para o meu umbigo/ E para o meu espanto, dei comigo mesmo”.

Manuel Bernardo, que nasceu na Trindade – ali bem perto de Batepá – reflete igualmente sobre a História escrevendo o poema «Trindade» que não é uma Trindade qualquer: “Um berço de uma mãe de mágoas, / Névoas verdes, verdes névoas, / Trindade foi sempre e / Nunca foi cidade pouca”. E depois, já vai longo este meu texto, o autor sai em memória de Alexandre Pinheiro Torres [nascido em Amarante, passou a infância em S. Tomé, mais tarde preso por ter apoiado Humberto Delgado, fixou-se em 1965 na Universidade de Cardiff, viajou e lecionou nomeadamente no Brasil, Estados Unidos e África] com o poema «Apenas Poesia». E pode ler-se: “Como se não bastasse o papel / Na pele do meu corpo escrevi um poema./ Lê-lo, não pude! A minha pele é negra/ Como era também aquela noite/ E não houve quem me desse uma branca caneta./ E eu só queria escrever poesia! Apenas poesia”.


 

Manuel Bernardo, já com diversa poesia premiada, foi jornalista na Rádio Nacional de STP e dirigiu o Grupo Teatral Juvenil da Trindade. Vale a pena ler o seu pensamento, nomeadamente neste dia 3 de Fevereiro, setenta e um anos passados sobre os trágicos acontecimentos de 1953 – quando o regime colonial português, pela violência e pela morte, assinou uma das páginas mais negras da sua história.

“Inquietações” – Manuel Bernardo com saudades da sua pátria longe e inquieta. Boa leitura.


António Bondoso

3 de Fevereiro de 2024.  

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro e prezado António. Desde logo, a minha profunda gratidão pelo préstimo a minha obra e ao nosso São-Tomé e Príncipe numa data memovel como o dia três de Fevereiro. Um grande abraço

Anónimo disse...

Não carece. Apenas a minha leitura. Abraço e mais poesia.