2008-10-19

VEIO DE NOITE E LEVOU-A !


A MORTE - ESSA COMPANHEIRA INSEPARÁVEL !

Veio de noite e levou-a. Luísa, minha tia - a "menina Luisinha" do meu recente livro "...DA BEIRA!" Luísa, irmã chegada de meu pai, tia dedicada de muitos sobrinhos deixou de sofrer. Vi-a a última vez a meio da tarde, cheguei mesmo a pensar que poderia estar presente no momento do seu último suspiro. No seu derradeiro sopro de vida, estou certo já não me ter reconhecido. Não reagiu aos gestos de carinho, já não respondia à minha inquietação quando manifestava uns breves momentos de queixa por entre uma respiração cada vez mais ofegante! E assim a deixei, impotente para lhe abreviar o sofrimento dos últimos dias dos meses mais recentes.

Interroguei-me se não seria mais humano, mais doce, mais cristão evitar tal sofrimento. Deus mostrou misericórdia e deixou que a morte a levasse noventa anos depois !



Não esqueço, não vou esquecer, uma sua frase (meio afirmação meio pergunta) tipicamente repetida nos últimos tempos de vida:- o que ando eu cá a fazer !? Ao que nós, cheios de boas intenções e mensageiros de um optimismo "camuflado", invariavelmente respondíamos afirmando a sua boa estrela, a felicidade que era ver casar os sobrinhos e os sobrinhos netos e ver novos rebentos de uma família que tem marcado Moimenta da Beira desde finais do século XVII.
Ver - era exactamente um gosto e um sentido que ainda resistia à erosão da vida da Tia Luísa, apesar de uma manifesta dificuldade. Contudo, bem menos preocupante do que a audição - um aspecto gerador de muitas situações hilariantes. Os "equívocos" de uma surdez avançada, no entanto, eram encarados - por ela e por nós - com uma naturalidade sadia. Mantinha-se a comunicação, consolidava-se a relação, a Tia Luísa era adorada.

E vai continuar a ser. Lembrada... pelo menos na liturgia da palavra :

LUISINHA...

Ó menina Luisinha !


O grito vinha da rua chegava pela janela

Próprio de quem conhece

Dono de quem respeita.

Tratamento de carinho

Doce quando amanhece

Como cheiro de canela.

Não importa quem passava

Nem carece de saber

Não importa quem chamava

Nem a notícia que vinha.

Lá dentro... todo o seu mundo...

Mal ouve o grito que soa :

Luisinha...

Ò menina Luisinha !

Mas chega à janela e espreita

Saúda quem apregoa

Seu nome com tom profundo.

Tormento de pão difícil

Pestes fomes e guerras

Ela encarna no amor

Ingénua sabedoria

Doa-se a ela toda

E a todos aos pedacinhos

Aos irmãos e aos sobrinhos

Às pessoas que a rodeiam.

É um coração solitário

À volta de muita gente

Por engano foi perdido

Por desengano ouvido

Lutou sempre e arduamente

No trabalho se empenhou.



Luisa leva lembranças

De um tempo que não foi seu

Não brincou às esperanças

De sonhos que não sonhou

Nem o Mundo conheceu

Mas a todos muito amou.

Luisa leva lugares

Vozes vazias e vagas

Num peito de sangue vermelho

Como vinho de lagares,

Um coração solitário

Cheio de seiva e de algas

Memórias de um corsário

Assaltante de um momento

Um grito no imaginário

No eco do pensamento:

Luisinha...

Ò menina Luisinha !


18-10-2008 : Fria, mas anunciada, a morte veio de noite e levou-a !


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