2015-04-25

AROMAS DE LIBERDADE(s)

Foto de Miguel Bondoso


Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto
(23 de Abril de 2015 – 21:30h)

 Livro de poesia “Aromas de Liberdade(s)”, de António Bondoso

RECENSÃO, Regina Correia


No Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor é uma honra para mim, simples cidadã anónima, poder partilhar convosco este espaço nobre e centenário no coração da “muy leal cidade invicta”, espaço recheado de memórias dos mais ilustres homens e mulheres de informação e de letras do país e comprometidos com a Liberdade.
Muito grata a António Bondoso por me ter convidado a apresentar seu último livro de poesia “Aromas de Liberdade(s)” e assim me ter proporcionado este momento inesquecível.

Partindo do princípio que “a arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos” (p.269) e “… consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação…” (p.261), como escrevia Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego”, apelo à vossa paciência para algumas notas de minha leitura informal de um livro dividido, por assim dizer, em duas partes – a primeira parte, dos “sete cravos” e a segunda, de “outros aromas poéticos”, em que “ser” pode causticar tanto que se desdobra necessariamente em arte.

O poeta transporta para as páginas em branco suas inquietações, seus sonhos, seus delírios que, nas entrelinhas dos versos, levam o leitor a viajar com ele através do universo de Língua Portuguesa espalhado pelos diferentes continentes… num exercício de rememoração crítica e de apelo à consciência interventiva de cada um de nós na realização efectiva da cidadania, a par de sentimento de amor, de melancolia e de saudade…

No título duas palavras apontam para a pulsação do livro – aromas e liberdade(s) – liberdade, no singular, como conceito, princípio de Humanismo mas sinónimo de garantias, direitos e deveres individuais, se considerada no plural.
O leitor absorve então um aroma floral na dita primeira parte, aroma de cravos, símbolo primeiro e definitivo da Liberdade e das liberdades, desde a revolução de 25 de Abril de 1974. O número de cravos em poema é de sete –número dos mistérios, perfeito, sagrado, mágico, no sentido em que a combinação de três com quatro representa o Espírito encarnado, a Santa Trindade sustentada pela Matéria – terra, ar, fogo, água.
O número sete é preferencialmente transversal a toda a filosofia e literatura, sobretudo à literatura sagrada, desde os tempos imemoriais até à actualidade, pela sua forte simbologia mística, de passagem do conhecido para o desconhecido, associado à sorte ou ao azar, como se contivesse em si a junção do bem e do mal… Mas é também símbolo da transformação, da procura do indivíduo para conhecer o infinito, as coisas espirituais…
Sete são os dias da semana e foram os dias da criação do mundo, seis mais um (simbolizado pelo candelabro de sete braços – menorá – no judaísmo).
Neste caso, o poeta António Bondoso retoma os sete dias da criação bíblica e recria, do cravo primeiro ao cravo sétimo, seu mundo poético e vital, plantando sete cravos contra o esquecimento.

Do primeiro ao sexto cravo, através da rememoração do poeta, assiste-
-se ao desfile dos acontecimentos e das decisões fulcrais que foram moldando o tecido político, social e cultural do país nestes quarenta e um anos, a partir do dia 25 de Abril de 1974, e no cravo sétimo, “abençoado”, citando o poeta, “não podemos descansar, a fim de assumir um lugar na História”.
O coração do leitor acompanha o encantamento do sujeito poético perante o alvorecer puro e tão esperado daquele dia 25, antecâmara de um mundo maravilhoso sem mais grades, sem guerra, sem miséria, escancarando as portas à construção do Homem Novo em Portugal e aos outros povos por nós colonizados.

Madrugada
Pura
Em noite desenhada
Alegria em Abril
Renascida
E p’lo Povo partilhada!
Também…
Por outros povos desejada.

(“Primeiro Cravo”, p.11)

O país acordava embalado pela esperança de um tempo renovado, em humores de Primavera com promessa de transformação, em que a vida se anuncia florida, livre, iluminada, após 48 anos de treva profunda. Logo surgem as primeiras dores na nova realidade provocadas por intentonas várias, pela chegada de milhares de portugueses sobretudo de África. As estações do ano sucedem-se, a ilusão permanece no povo anestesiado pela ânsia de liberdade e é assim que entra no mundo da família europeia, cuidando que se sentaria à mesa dos poderosos, mimado com o desvelo… de irmão… mas não será bem assim e começará a sentir a mesma inquietação, a mesma agonia do poeta ao escrever no Cravo Quinto (p.15), que se fez do país:

[…]
Um deserto em morte lenta
Sem cravos, sem Abril
Sem gente sequer cá dentro!

No texto explicativo inicial, o autor refere-se à importância das viagens e dos sentidos na apreensão do mundo que diferentemente e de forma sempre enriquecedora da identidade viu, ouviu, saboreou, cheirou, tacteou ao longo da sua vida, especialmente ao correr dos últimos quarenta e um anos. De Moimenta da Beira a S. Tomé e Príncipe, passando por Angola, Macau, por tantas outras paragens do nosso vasto planeta e naturalmente por esta sua tão amada cidade do Porto, amor aliás eternizado na palavra poética que inspira e em fotos expressivas que regularmente publica nas redes sociais, p. ex. (p.9). No referido texto inicial dois vocábulos ressaltam como tradutores dos sentimentos do poeta durante seu périplo existencial – “felicidade” e “liberdade”, esta pedra de toque daquela, ainda que os sobressaltos de percurso pudessem ter ferido o sonho primordial, quanta vez!

Citando Ricardo Reis (heterónimo de Fernando Pessoa, em "Odes"):

  […]
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.

“Aromas de Liberdade(s)” é, pois, um acto poético de registo da memória do que se sonhou, se viveu, do que se viu e do que espicaça o espírito de cada cidadão que, como o poeta, acorda diariamente perturbado com aquilo que vê e ouve à sua volta, com aquilo que é e com aquilo que pensa e sente que poderia e deveria ter sido Portugal, a seguir ao Dia da Liberdade.

O país é a primeira grande preocupação do poeta (ver capa!).
A capa sugere uma janela em forma de território continental português recortada sobre uma nesga “rural” desse território, que poderá apontar para significação ambígua – uma casa no campo, rodeada de verde e de céu azul, sinónimo de evasão do bulício estéril das cidades poluídas pelo desconcerto dos valores de uma humanidade sã – por onde se esgueiram a solidariedade, a saúde, a educação e a cultura, a liberdade, a verdade? Enfim, talvez represente aquele abrigo onde o guerreiro encontra algum sentido para a vida na comunhão com a natureza serena, quase intocada.
Mas, por outro lado, poderá esta “janela” fazer-nos reflectir sobre a deserção das regiões campestres, o abandono a que a agricultura tem sido votada pelo poder político, sobre o “Portugal dos pequeninos-armados-em-grandes” que vão sufocando o sonho inicial, sobre um povo “que deu mundos ao mundo”, que verteu seu sangue por uma pátria agora divorciada da realidade, injusta e cruel…

Neste livro pulsa a intranquilidade dos sentidos, o cruzamento de cheiros em português na lembrança de quem pugna pela liberdade num tempo de desnorte e de amarras engravatadas… um passado recente de desenganos… (Lê-se na p.41):

“Em catorze além dois mil…
Tudo se foi e restou nada.
Como se fora colorida a ilusão
Ou pura hipótese
De uma dose de vazio abandonada.”

“Aromas de Liberdade(s)” alerta-nos para a necessidade de manter os sentidos despertos num tempo sem palavra, num tempo de traição aos valores do humanismo, aos ideais de Abril, num tempo de traição à vida, de “serpentes espreitando os incautos”… É um grito contra o esquecimento, contra os silêncios ruidosos e insuportáveis, contra os atropelos à liberdade. Mas um alerta comprometido, que não se põe de fora, com sentido elevado e sério de autocrítica, quando aponta o dedo aos erros alheios… “Todos fomos culpados. Não se condenem os cravos” (p.16 – Sexto Cravo). Trata-se aqui de um alerta para a injustiça, para a vilania, para “tanta ignorância//de todas as desgraças mãe” (p.33). De um condoimento pelo estado deplorável, infra-humano, a que a vida da maioria dos portugueses chegou… Uma nota de revolta contra e de acusação aos poderes instituídos… à ganância, à corrupção, à incompetência… Tal comprometimento conduz a um apelo a que a poesia sai à rua, a que o país se “faça de novo ao mar” em metáfora de renascimento, de descoberta de novos rumos dentro de si mesmo e no mundo, em prol do futuro, das novas gerações…
E apesar de sonhos tragicamente esfumados, o sujeito poético segue, determinado, resistente, com os olhos do coração, a linha quebradiça da utopia naquela nuvem branca montada por um cavalo voando veloz na dianteira do vento (p.37), qual D. Sebastião da nossa eterna e eleita espera…
Mas só cooperando verdadeiramente na diferença, na partilha, como o cavalo e a nuvem, se poderá atravessar tempestades…como nos jogos de poder comparados a um jogo de xadrez em tabuleiro viciado…
(Lê-se na p.43):
[…]
“O meu sonho vai nu
Sem véu e sem manto
Mas talvez possa ainda
Salvá-lo do pranto.”

Nestes sessenta e cinco poemas acompanhamos a vida como uma viagem de sentidos na ilusão de que a paisagem se move, sendo nós próprios a atravessar o “tempo e o modo”, tudo o que é efémero e, que por nossa voz, por nossas mãos, despirá a máscara e olhará de frente seu rosto no espelho dos dias (Lê-se na p.35):

[…]
“Cerrando as pálpebras
Deixamos que o cavalo de ferro
Nos conduza
Levando de nós mil sentidos
A cavalgar o desejo imensurável
De um destino
Por natureza imponderável.”
[…]

Mas são-nos também oferecidos aromas de lirismo em que o sujeito poético se derrama, como se descansasse da luta permanente com sua culpa, com seu remorso, da reflexão angustiada sobre os males do mundo e, entregando-se aos devaneios do coração que conserva a pureza, a ingenuidade cristalina da infância não corrompida pelo desencanto, pelas armadilhas venenosas a cada esquina do caminho percorrido, descobre tempo para o “tempo de encantamento”.
(Lê-se na p.54):

“E assim...
Bem defronte dos teus olhos
Poderás ler nos meus lábios
Que a vida tem sempre um tempo
Precioso e de mistério.

Um tempo de encantamento
Que alimenta e ressuscita
A alma junto do corpo”
[…]

Depois do perfume dos sete cravos da primeira parte, o leitor encontra na segunda parte do livro “outros aromas das palavras” em homenagem à mulher, à família, ao amor, aos amigos, às terras onde se fala português e às suas gentes, à cidade do Porto, ao seu rio.

(Da p.45 à p.52) deliciam-nos poemas dedicados à mulher que o poeta elege como ser de eleição, citando-o – “lutadora, amante, mãe, dócil, corajosa, sofrida, exemplar”. Lê-se na p.47):

“Ela passa e aparece
Como quem sempre merece
Atenção e projeção.
É filha de um Deus Maior
E sabe até guardar segredo
Que retalhe o coração.” (p.47)

Também poemas dedicados ao amor (da p.53 à p.56) sentimento que em si encerra doçura, encantamento, mistério, sensualidade, casamento entre corpo e alma, luz, entrega, partilha, eternidade… um amor que faz transbordar as margens do humano e constrói pontes de entendimento, de identidade na diferença, quando da mistura dos sabores distintos (da canela, do chocolate, da framboesa, da pitanga, da baunilha) resulta uma só cor, um só sabor, uma textura homogénea e reconhecida, íntima. (p.57) de paladares, de cheiros, de toques (sentidos)…

Ou poemas de homenagem a quem ficou gravado para sempre na memória dos afectos (p.58) – professora de matemática, o amor-perfeito dos alunos…

Poemas ao pai (p.60)… aos filhos e netos (p.61) até p.63….

Em Bondoso sempre poemas de homenagem à cidade do Porto – p.64 à p.74 a paisagem envolvente, o rio sempre presente como se do mar se tratasse/boca de mar aberta para o mundo em movimento de sonho, de reflexão, de acção, de mudança, a arquitetura, a geografia humana, o tempo psicológico e o tempo atmosférico, a chuva, o sol, a lua, o nevoeiro/cinzento, a ambiência dos afectos, a música no ar, no olhar, a religiosidade, a arte sacra/os monumentos do espírito, os santos (S. João), os santos populares, as festividades… a poesia das ruas/o coração latejante das ruas – “A Viela do Anjo” – LER (p.67) e “A cidade e o sol” (p.68), também a paisagem do Douro (socalcos), o comboio sempre nomeado…
E do rio ao mar, às viagens, às navegações que formaram a identidade e a saudade, as memórias, e a S. Tomé – foto p. 75…

Viajamos nos poemas dedicados às “terras achadas e/ou descobertas” – da p.76 à p.85:
P. 76 – Açores, P.77 – Madeira e Porto Santo, P.78 - Cabo Verde, P.79 Guiné, P.81 – S. Tomé, LER (P.83) – Angola, P.85 – Brasil

“Aromas de Liberdade” é um conjunto de poemas na sua maioria curtos que se intercalam com outros mais longos onde a palavra corre em suas próprias veias de emoções e anseios…num estilo informal, desobediente a métricas e a rimas… transmitindo ao leitor cor, ritmo sonoridades, musicalidade, enfim energia criativa poética. O poeta António Bondoso oferece-nos um hino, um cântico à saudade, ao amor, à mulher, à sensualidade, à família, à amizade, à interculturalidade, à pátria livre desenhada a ouro na Língua, nas sílabas com perfume de vida rememorada nos tantos caminhos em que se aninha e enraíza…

“A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita”
[…]
Poema”, Sophia de Mello Breyner

António Bondoso é um homem de corpo inteiro. É poeta com coração de menino, que se comove com as “agruras” do mundo mas também com as pequenas grandes chispas de ventura. É cidadão atento, por isso tão preocupado com a política, com os problemas sociais, com a cultura deste seu país, homem-poeta inspirado e inspirador, sempre desperto para a realidade circundante, que se inquieta com os desvios ao caminho do futuro…, é leal às promessas que a amizade exige, ao percurso de mão dada com os afectos… António Bondoso é espírito aberto ao cruzamento de todas as culturas, especialmente as que habitam o universo de Língua Portuguesa. É um ser bem formado, inteligente, sensível, culto, com quem se aprende e se enriquece na partilha das coisas do pensamento… António Bondoso é um homem de família, porque não há árvore que se torne frondosa, sem que suas raízes sejam saudáveis e bem “presas” ao chão que as alimenta. António entrou de mansinho há sete meses, quem diria! Será coincidência o número sete? Entrou de mansinho e ficou morando para sempre em meu coração…  

Parabéns, António Bondoso, meu amigo, meu irmão poeta! Que estes teus “Aromas de Liberdade” se multipliquem e perfumem abundantemente a atmosfera onde a palavra poética é já grito e flor numa Primavera prenhe de angústia mas também de esperança renovada.

Regina Correia


Fotos de Miguel Bondoso


António Bondoso
JORNALISTA

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