2018-08-02

UM LIVRO DE VEZ EM QUANDO…NESTE ANO DE 2018. [2]
Ou de como um Professor que eu conheci em S. Tomé – José Casinha Nova – se vai transformando num verdadeiro contador de histórias e num perspicaz «gravador» de memórias, do Algarve a Timor…e talvez S. Tomé e Príncipe. 


Falar de ou escrever sobre UMA VIDA INTEIRA será sempre, e sob qualquer ponto de vista, transmitir uma visão redutora da riqueza humana e patrimonial da aldeia algarvia de Burgau – o último posto avançado do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, já muito perto da cidade de Lagos onde nasceu Tibúrcio, o principal personagem desta obra em apreço, da autoria de José Casinha Nova.
         Casinha Nova, ele próprio natural de Burgau, freguesia de Budens e concelho de Vila do Bispo, foi meu professor de Literatura no então Liceu de D. João II, em S. Tomé, na segunda metade da década de 60 do século passado. Foi igualmente docente em Portimão e em Faro, depois de haver cumprido o serviço militar em Timor. Esta ex-colónia portuguesa, aliás, mereceu já uma reflexão do autor não há muitos anos. Memórias de Timor – assim está referenciado – é um excelente livro de consulta sobre o passado deste novo país de língua oficial portuguesa e destaca a paixão que o território lhe ofereceu titulando RAN MÉAN ÔTU, que significa O SANGUE É TODO VERMELHO.
         Agora, neste seu Uma Vida Inteira (vertida na experiência dos seus preenchidos 84 anos), José Casinha Nova regressa às origens ficcionando a vida de uma típica família algarvia do início do século XX, no seu espaço social, económico e cultural que é Burgau, na sua história e nas suas «estórias», nas suas lendas e nas suas memórias. Não lhe poderei chamar uma «autobiografia», pois o autor não assume a obra como tal, mas a “ficção” é tão real, tão pormenorizada, que – confesso – essa ideia continua a perpassar a minha reflexão.
         Para além de historiador, Casinha Nova assume o excelente trabalho de um retratista e paisagista ímpar, não deixando igualmente – nunca – a sua eterna condição de professor. Não só pela qualidade da escrita, claro, na qual não esquece o tradicional falar algarvio, mas também pelo facto de «valorizar a Escola». Como? Por meio de uma cerrada crítica ao funcionamento da época. De pedagogia, nem falar! O professor «debitava» e os alunos – aqueles afortunados por poderem frequentar – tinham por missão decorar. E quando não decoravam…os tradicionais castigos corporais. Havia uma sala com alunos da 1ª à 4ª classe, uma só professora e nada de aquecimento no Inverno. E depois, o corolário dos retratos de Carmona e de Salazar com o cartaz de Deus, Pátria e Família. Os livros tinham todos grande carga política – escreve Casinha Nova. Para além das alusões a Salazar, havia igualmente «uma abundante prosa de religião católica». Não admira, portanto, que os alunos faltassem às aulas «para ir para um canto da praia jogar às cartas com outros rapazes analfabetos, pois os pescadores de Burgau não punham os filhos na escola». 


Sem pretender desvendar a narrativa, não parece curial esquecer a localização geográfica de Burgau. Podem sempre acompanhá-la na figura anexa, mas o autor encarrega-se de lembrar: «A aldeia de Burgau fica situada exactamente na extremidade sul da famosa Costa Vicentina a oeste do Cabo de S. Vicente que dá nome à dita Costa e tem a particularidade de, embora pequena, estar dividida entre duas freguesias, a da Praia da Senhora da Luz, concelho de Lagos, e a de Budens, concelho de Vila do Bispo». Vista do mar, ao longe – prossegue Casinha Nova - «Burgau lembra uma gaivota pousada em dois estaleiros, o da Teimosa e o do Burgau Velho. As patas da gaivota são duas ruas quase paralelas que vão terminar nos tais dois estaleiros».
José Casinha Nova, exímio retratista das muitas histórias e memórias, acaba por convidar o leitor a viajar no tempo, conhecendo uma povoação pesqueira algarvia antes do advento do turismo de massas. E consegue-o, não só pela palavra, mas também pelas imagens que ilustram profusamente a obra. Pela parte que me toca mais, o destaque da grafonola – pois nesse tempo nem a Rádio existia. E fazer funcionar a grafonola só por meio de uma manivela para dar corda, uma vez que nem eletricidade havia. E depois há o mar, a pesca, a poesia e os tempos difíceis da II Guerra Mundial.
         Uma Vida Inteira é, portanto, um desfiar de estórias e de memórias a partir de Tibúrcio e da sua mulher amada Aldegundes, ele um homem de visão empreendedora, ela uma mulher resoluta, dedicada e empenhada na manutenção do espírito familiar.
         Quem ler, por certo perceberá como o autor foi capaz de me injetar o gosto pela leitura passando primeiro, claro, pela «obrigação» de o fazer. Já lho manifestei, e volto a repetir, a Casinha Nova devo muito do meu gosto pela escrita. E embora não fosse um aluno muito aplicado, recordo hoje como foi decisiva a fórmula por ele «inventada» para nos «obrigar» a ler e a perceber. Simplesmente criou uma «ficha de leitura», na qual deveríamos resumir a obra indicada e autorizada pelo sistema. É só ver a figura.
         E não perca a oportunidade de, lendo o livro, ficar a saber o destino de Tibúrcio e da sua família, não apenas em Burgau. É UMA VIDA INTEIRA, dada à estampa pela Arandis Editora. Boa leitura e um abraço muito particular ao Professor José da Conceição Casinha Nova, ficando à espera do próximo relato sobre S. Tomé e Príncipe. 


António Bondoso
Jornalista
Agosto de 2018. 


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