2013-07-12

A PROPÓSITO DO 38º ANIVERSÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DE S.TOMÉ E PRÍNCIPE.
12 DE JULHO DE 1975.

Escrevi "Escravos do Paraíso" para assinalar os 30 anos da independência; fiz publicar "Seios Ilhéus" para marcar o 35º aniversário do acontecimento; provavelmente inicio hoje um capítulo do que poderá vir a ser mais um contributo para dar a conhecer as ilhas do meio do mundo:
Eu, na ponte da Boa Entrada, com minha mãe e minha irmã.

VIAJAR HÁ 60 ANOS...
...ou de como era difícil "emigrar" para África.

Verão de 1953. Não dos mais quentes de que possa haver memória mas, mesmo assim, na ponta de Sagres foram registados 31 graus célsius – centígrados, dizia-se na época.
Nos três anos da minha inocência, a bagagem que transporto não permite reter grandes cenários, muito menos registar factos ou imagens que se possam vir a revelar como determinantes para o meu futuro numa outra terra longe e sobre a qual nada sabia. Dela nunca ouvira falar. Contudo, isso não impediu o início de uma grande viagem e de uma aventura imensamente quente e frutuosa.
 Da minha casa, no Largo das Cinco Ruas, onde nasci – saí pelo meu pé, suponho que trajado à boa maneira domingueira da vila, sinal de uma humildade de caráter que marcou os meus progenitores – acompanhando, penso, um misto de triste incerteza e de uma jovem e apaixonada ansiedade de minha mãe, pelo facto de ir ao encontro de meu pai já ausente há largos meses. Não tenho a certeza, mas creio que o estado de espírito da minha irmã seria igualmente um misto de prazer pelo imaginário da viagem e de contida alegria por partir ao encontro do pai.
Imagino que tenha havido despedidas, quer dos familiares, quer dos amigos, não faltando certamente momentos de choro ou de alento, palavras de tranquilidade e de incentivo – tudo o que é comum em circunstâncias dessa natureza. Dos meus avós, todos vivos, talvez a separação tenha sido mais dolorosa para os maternos. Era mais uma filha que partia, depois dos desenlaces fatais com a Céu e a Cacilda e após terem rumado ao Brasil o António e o Manuel, sendo que o Zé tinha arranjado trabalho em Gouveia. Ficava apenas Clementina para consolo do par Énico Félix e Augusta Soares Mendonça.
Admito, portanto, que reinasse ali, na velha casa do avô nas Cinco Ruas, muita tristeza e imensa preocupação. Ao mesmo tempo, seria perfeitamente natural a esperança de que tudo fosse correr bem num outro lugar – quem muda Deus ajuda – face às dificuldades que o país atravessava depois da II Guerra Mundial. E Salazar já estava há mais de 20 anos no poder. A emigração, tal como hoje e talvez desde sempre, era muitas vezes a saída de sentido único. Nesse tempo, para o Brasil e apenas em cinco anos[1950-53], tinham já partido mais de 180 mil adultos e quase 34 mil crianças. África ainda não era, como nunca viria a ser, o destino prioritário de milhões de portugueses que fugiam à pobreza. O fluxo aumentaria, apesar de tudo, mas por motivos de ordem diversa.
Só que o pai havia recebido a “carta de chamada” por intermédio do seu irmão Zeca que, por sua vez, já partira para as ilhas do cacau em 1949, “chamado” pelo cunhado Honorato, ali nascido e que viria a casar com a tia Palmira – ambos de contabilidade já cumprida neste mundo, infelizmente. Os laços familiares sempre geraram as “correntes” ou, pelo menos, ajudaram à decisão da “escolha”.    
E foi assim que, nesse verão de 1953, as minhas pernas subiram os degraus de uma velhinha camioneta – não sei se da marca Bedford – tendo tomado assento nessa viatura que efetuava a ligação entre Trancoso e Lamego. Os avós António e Maria José não faltaram à saída do Largo do Tabolado, imaginando eu – sabedor, hoje, de outras histórias – uma diferente forma de encarar o facto. O avô paterno protagonizara igualmente uma década de trabalho no Recife, Brasil, para onde emigrara em 1905.
Por outro lado, tendo conhecido durante largos anos as difíceis ligações rodoviárias à cidade do Porto, imagino ainda que a viagem até Lamego, primeiro, e depois até à Régua, antes de chegar à Invicta, não tenha sido muito fácil. Uma dor de cabeça mais que provável para a minha mãe, apesar de uma eventual e pequena ajuda da minha irmã Luisa, já com nove anos de idade. Mas, até prova em contrário, admito ter sido um herói.
Da cidade do Porto a Matosinhos, ao porto de Leixões, só o cansaço poderia ter causado qualquer outro pequeno problema. O último percurso em terra firme, antes de embarcar no “Pátria” – um paquete de 19 mil toneladas, da Companhia Colonial de Navegação que havia sido criada no Lobito, Angola, em 1922. A CCN daria ainda à rota marítima de África outros navios como o Império, no qual também viajei, o Vera Cruz, o Santa Maria – que viria a servir de palco a uma das mais badaladas ações contra o regime de Salazar – e, já em 1961, o Infante D.Henrique, com 23 mil toneladas. A “cereja no topo do bolo” para ombrear com o “Príncipe Perfeito”, da CNN – Companhia Nacional de Navegação.
Enfreitei, então, pela primeira vez o mar, mas desse embate continuo a não ter memória, talvez pela razão de viajar instalado no porão – que é como quem diz na 3ª classe, não sei mesmo se na 3ª classe suplementar. Dali não se via o mar, apenas sentia os efeitos do seu ondular. E depois Lisboa, e o mar muito mais bravo até à Madeira – antes de Las Palmas para reabastecimento. Nove dias de viagem da qual me ficaram as imagens das camaratas do porão, até avistar o verde das ilhas de nome santo, as ilhas do meio do mundo no Golfo da Guiné, as pérolas de expressão portuguesa na linha do Equador, a sul do qual dizem não haver pecado.
S.Tomé – a Ilha...apresentou-se aos meus olhos de criança de uma forma difusa, vista de longe, pois não havia cais acostável para os grandes paquetes. O Pátria fundeou ao largo e os passageiros foram obrigados a efetuar um transbordo para pequenas lanchas – os “gasolinas” do Castela, soube mais tarde – e dali uma pequena viagem até ao velho cais da então Praça do Império. Por muito que me continue a esforçar, não me recordo de o meu pai ter ido receber-nos a bordo. Mas certamente que foi. Era uso costumeiro, independentemente da atitude de boa educação. E subiu as escadas do portaló e terá sorrido quando nos viu, abraçando em seguida a mulher Virgínia e os filhos, antes de uma saída algo “ondulante” e perigosa, graças à “calema” – a ondulação sempre forte em alto mar, mesmo em dias de calmaria.
Também não me lembro, mas seguramente que havia tubarões a rondar, respondendo ao cheiro e ao sangue dos restos dos géneros que eram despejados da cozinha do navio. Um ritual sagrado do “gandú”, como aprendi mais tarde. E nunca foi fácil desfazer essa ideia de que os tubarões estavam ali, sobretudo, para amedrontar as pessoas. Mas nesse, como na quase totalidade dos dias de “São Navio”, ninguém caiu ao mar. Era grande a perícia dos marinheiros das lanchas. E todos puderam chegar ao cais da cidade, deparando com a estátua de João de Santarém, no jardim da Praça e no qual pontuavam as palmeiras de grande porte.
Percebi – fui percebendo – tudo isto mais tarde, já depois de instalado numa pequena vivenda no Bairro de N.S. da Conceição, de construção relativamente recente. A rua era ainda de terra batida, ficando encharcada e lamacenta depois das célebres chuvadas tropicais – fortes e pouco demoradas, a não ser naqueles dias de grandes tempestades e trovoadas de arrancar orações ao mais cético dos não crentes.
E depois das chuvas – disso já tenho memória – era a alegria de brincar nas poças de água barrenta, tentando agarrar aquelas pequenas larvas saltitantes e moribundas com a rápida evaporação das águas. Em tronco nu e descalço, usando apenas uns calções de centavos, foi uma adaptação quase perfeita e imediata ao calor tórrido e à humidade extremamente sufocante. E o cenário da mata do Riboque nas traseiras da casa? Convidativo à aventura e refrescante quanto baste.
E assim se foi processando a minha integração nessa terra longe, ficando para trás o já quase vazio reservatório da memória. As novas imagens e as novas descobertas foram ganhando preponderância. A qualidade de vida podia praticamente resumir-se ao meu trajeto entre o Bairro da Conceição e a Escola Primária de Vaz Monteiro, em tronco nu e descalço e apenas com os calções de centavos ou com as calças de um pijama desnecessário, dando com um pequeno pau no arco, a girar, sempre a girar, até chegar à porta da escola e dizer que queria ver a minha irmã. E depois voltava, compenetrado, passando pelo mercado e pelas padarias da praça, pelo grande frigorífico de fazer gelo e pela Igreja de N.S. da Conceição[onde viria a casar com a Maria do Amparo, fará em breve 39 anos], na qual paroquiava o célebre Padre Martinho Pinto da Rocha, que um dia disse ao Bispo de S.Tomé e Arcebispo de Luanda – “posso ser um mau padre, mas sou um bom pai”! E foi...um pouco de tudo:- padre, pai, juíz e outros ofícios de grande cartaz.
Por essa altura ainda não tinha “consciência” do que se passara havia poucos meses, no Batepá, perto da Trindade. E das consequências desse triste acontecimento, em Fevereiro, e que viria a prolongar-se por vários meses na Colónia Penal de Fernão Dias: uma praia marcada pela revolta, pela força brutal das autoridades e seus capangas, pela humilhação e pelo sangue derramado da gente da terra. E das rusgas policiais para angariar mão de obra forçada, mãos que haviam construído com sangue casas como essa onde passei a viver. Nada sabia, ninguém me dizia...e a Ilha também passou a ser minha. E todo o mar à sua volta!
          Dela não cheguei a tomar posse formal. Mas adotei-a de coração e ninguém levará a mal se eu utilizar aqui o conceito da figura jurídica da “Usocapião”.
Em tempos chamei-lhe minha. (A Publicar)
Era ali que eu existia
E tinha pela frente o mar imenso
Com ondas de calema e tanta espuma,
Contava carneirinhos a perder de vista
E sonhava com os mistérios do mundo.
Que era ali, todo inteiro, até onde meus olhos alcançavam.

Depois... um limitado horizonte de livros e de mapas
E barcos a cruzar o oceano
E eu navegando neles,
Disseram que muita gente e outras naus
Haviam por ali passado na aventura do saber e conhecer.
E falavam de outros homens que, escravos,
Mais escravos conduziam p’ra alimentar terras distantes
Comércio antigo de Roma, Egito e tantas Áfricas.

Alguns vieram e partiram
Outros ficaram e quiseram
Partilhar o que não tinham,
Muitos roubaram e rasgaram
Nem todos souberam amar.
Mas era ali que eu existia...
Por isso lhe chamava minha
Por isso lhe queria muito.
Crescer e saber que a pertença é relativa
Não mudaram meu querer.

E a separação dolorosa prolongada além do tempo
Machucou mas não matou
Essa relação intensa.
Aumentaram meus afectos
Somados a outros sonhos
A saudade serenou e o pensamento a voar
Trouxe a Amizade de volta no vento do furacão.
E há nomes no horizonte
De um mesmo mar que revejo
Com águas de outro nome.
Longe canta o ossóbô e o papagaio repete:
Ainda lhe chamo minha !
== A.B. (A Publicar).

Nos capítulos seguintes – até à minha partida “definitiva” de S.Tomé, na sequência do golpe militar de 25 de Abril de 1974 e da chamada “revolução dos cravos” – haverá outras grandes e pequenas histórias para contar. Até mesmo aquela de os médicos se mostrarem preocupados com a minha magreza e aconselhando uma mudança de ares. Para a “metrópole” rapidamente, aos seis anos de idade, a fim de ganhar corpo. Vai daí, uma nova viagem, agora no paquete “Império”, entregue aos cuidados de um amigo que vinha em gozo de licença graciosa, o Senhor Pereira, de Sanfins, empregado comercial na Casa Higino Curado dos Santos.

Eu com o Sr. Pereira e o cão fiel, em frente à casa do Bairro da Conceição

António Bondoso
Jornalista – C.P. 359
Julho de 2013.

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